ATERRORIZADO[1]
Decorria a hora de almoço, quando a campainha do palacete da Pereira Reis, onde funcionam instalações da Polícia Judiciária do Porto, soa insistentemente. Pelo videoporteiro, o inspector de serviço pôde descortinar a silhueta de um cavalheiro que aparentava os seus cinquenta e tais, exibindo um minúsculo cartão que, todavia, lhe não fora possível identificar. Perguntou quem era, e a resposta não tardou, disparada de súbito, em tom de súplica desesperada.
– Por favor, deixe-me entrar, senhor inspector! Estou a ser perseguido por uma corja de bandidos que me querem matar.
– Não querem lá ver que é mais um daqueles dementes que andam por aí a bater nas costas das pessoas, junto às paragens doa autocarros, a pedir cigarros ou «uma esmolinha por alma de quem lá tem»! A culpa disto tudo é de quem instalou a Polícia Judiciária nas proximidades do Conde de Ferreira – murmurou o investigador. Porém, fingindo não ter entendido a súplica, insistiu:
– Faça o favor! O que é que o senhor deseja?
E o indivíduo, ofegante, volta à carga, no mesmo tom de desespero:
– Abra-me depressa a porta, senhor inspector, senão eles matam-me!
Apercebendo-se do medo que o transia – afinal, os loucos também sofrem! –, o investigador manda-o entrar e permanecer encostado ao portão, da parte de dentro, onde ninguém, seguramente, lhe faria mal, até que alguém o fosse atender. Seguidamente, abre-lhe o portão através do comando electrónico, e eis senão quando vê entrar, de rompante, ar assustadiço, um sujeito de compleição física razoável, na casa dos quarenta, de cartão entalado entre o indicador e o polegar direitos, bem içado para que toda a gente o visse, olhando insistentemente para trás, completamente aterrorizado. Avançou uns metros e aguardou por ali, sondando com o olhar o prédio, de alto a baixo, e suas imediações, na expectativa de vislumbrar alguém que se apressasse a vir em seu socorro.
Fechado o portão, o inspector assoma à janela do 2.º piso, de onde, para o tranquilizar, o aconselha a ter calma, pois ali ninguém lhe fará mal, prometendo-lhe descer de imediato para o atender. E, absolutamente em pânico, o cavalheiro volta de novo a exibir-lhe o minúsculo cartão que, de lá do alto, obviamente, o inspector nunca poderia identificar. Contudo, apesar da distância, ainda pôde perceber pelas suas palavras trémulas de pavor, a corroborar a identificação, que era reformado das Actividades Económicas.
Desceu ao seu encontro, deparando com um indivíduo verdadeiramente possesso, mascando umas pastilhas, provavelmente medicinais, que exalavam um intenso hálito desagradável e apresentando os cantos da boca orlados de uma matéria esbranquiçada. Verificou o tal cartão, confirmando a identidade que já lhe havia fornecido verbalmente.
– Com que então, querem matá-lo, é, esses bandidos? – indagou o investigador, simulando ter acreditado, uma vez que a intuição já lhe havia feito o diagnóstico.
– Querem, sim, senhor inspector. Acuda-me, por favor! Está lá fora um batalhão de indivíduos armados até aos dentes; aquilo é metralhadoras, caçadeiras, punhais, e olhe, vieram a perseguir-me até aqui e querem matar-me – e sem que conseguisse acabar de tartamudear a frase, embargou-se-lhe a voz, numa acentuada lividez, os lábios frementes de emoção.
«Bem me palpitou que deveria ser mais um esquizofrénico que se enganou na porta. E logo havia de me tocar a mim este petisco», murmurou o inspector.
– E então o que é que, afinal, esses malandros todos lhe querem?
– Querem matar-me, senhor, pois o que é que hão-de querer?!
– Eu sei! Mas não foi isso o que eu perguntei! Porque é que, afinal, eles o querem matar? O que é que o senhor lhes fez?
– Nada. Eu não lhes fiz nada. E olhe que já vêm atrás de mim desde o Hospital Conde de Ferreira!
Conde de Ferreira! Afinal, se dúvidas havia…
Dizer-lhe que não, que aquilo era uma alucinação ou coisa que o valha era o mesmo que estar calado; ou pior ainda: para ele, o louco passaria, com toda a certeza, a ser o inspector, e iria interpretar a sua atitude como má vontade ou um expediente para o despachar, em vez de lhe dar ouvidos e tentar ajudá-lo. Não. Deixou-se entrar no jogo, mostrando-se empenhado em ajudá-lo. Insistiu em querer saber mais pormenores do ataque e das razões que o motivaram, para, depois, agir em conformidade.
– Olhe, eu fui agente das Actividades Económicas, e tive um chefe que estava sempre a entornar. Como sabe, a gente visitava muita casa, e eu, para não ficar mal ao pé dele, é claro, deixei-me ir na onda.
– Já estou a ver o filme! Copofonia, não é verdade?
– Infelizmente, senhor inspector. Comecei a beber, a beber, e olhe, escusado será dizer que, quando dei por mim, estava um alcoólico crónico. Fui ao médico, que me deu um remédio para me desintoxicar, e olhe, deu nisto. Fiquei assim, lerdo das ideias, pelo que não tive outro remédio senão reformar-me. Fui mandado para o Conde de Ferreira. Agora, ando lá nas consultas.
– Hm! Hm!
– Sabe, eu vivo sozinho num quarto alugado, perto da Praça da República. Às vezes, saio de casa e, como não tenho que fazer, dou umas voltas por aí, para ir passando o meu tempo. Hoje, encontrei um sujeito, no jardim do Marquês, que meteu conversa comigo, e como não tinha que fazer e era dia de ir à consulta, pedi-lhe que me acompanhasse. Ele aceitou, sem me criar qualquer problema. Só que, quando eu estava a ser visto pela médica, e não sei por que carga de água, disse-lhe que eu era homossexual. E olhe, não é que ela não só já não acabou a consulta, como me disse que não queria mais nada comigo!
– Pô-lo na rua, com alta forçada, foi?!
– Pois foi. Mas o pior foi o que veio a seguir. Como se isso não bastasse, o fulano arrebanhou um grupo de indivíduos, todos armados – aquela seita que está lá fora! –, e que se puseram a perseguir-me rua fora até aqui. Se não fosse o senhor abrir-me ao portão para me proteger, não sei o que é que me poderia ter acontecido! Ai não sei, não!
– Tenha calma, homem! Aqui, está em segurança, ninguém lhe vai tocar. Sossegue, que eles não lhe vão fazer mal. Eu vou já tratar de os ensacar. Vou já telefonar para a Esquadra daqui da zona, e vai ver que eles passam tudo a pente fino num instante e tudo o que encontrarem levam, pelo que o senhor já vai poder regressar a sua casa, são e salvo, com toda a segurança. Certo? Aguarde aí, por favor!
– Agradeço-lhe imenso, do fundo do coração, senhor inspector. Olhe que esses bandidos, se me apanham, matam-me. Mas é que matam mesmo! Não tenha a menor dúvida!
– Ai lá isso, pelos vistos, meios não lhes faltam! Bom, fique descansado. Aguarde aqui, que eu vou já tratar disso.
E o agente voltou a subir ao 2.º piso, refastelar-se na cadeira e acabar de ver na TV o noticiário das treze, que aquela aflição lhe havia forçado a interromper. Passada cerca de meia hora, tempo que calculou suficiente para a operação de limpeza à zona, e terminado o noticiário – ou será que os loucos não têm a noção do tempo? –, desceu novamente junto do perseguido, encontrando-o completamente transfigurado para melhor, obviamente: completamente relaxado, tendo a sua lividez cedido lugar a um leve rubor.
– E então, senhor inspector, eles sempre os apanharam?
– Tudo! Apanharam-nos todos, sim, senhor. E olhe que, afinal, o senhor tinha toda a razão! Era realmente um batalhão deles. Creio que levaram daí meia dúzia de furgões completamente a abarrotar. Só de armas encheram eles uma ramona!
– ‘Tá a ver, ‘tá a ver! Eu não lhe dizia?! Eu sabia que tinha razão. Não querem acreditar em mim!
– Pronto, agora é que pode ficar completamente descansado. Foi tudo limpo.
– Estou-lhe imensamente grato, senhor inspector.
– Bom, e agora para onde é que o senhor vai?
– Vou para minha casa.
– E por onde é que está a pensar ir?
– Aqui pela Costa Cabral, ao Marquês, Constituição…
– Não! Não vá por aí! Preste atenção ao que lhe vou dizer: vá antes aqui por trás, pelo campo do Salgueiros – sabe onde é? –, sobe a Álvaro de Castelões, vira para a rua do Bolama… É mais seguro. Não vá, às vezes, o diabo tecê-las. É que não vá dar-se o caso de ter ficado por aí algum esquecido e…
– Sei, sei, conheço muito bem esse caminho. Muitíssimo obrigado, senhor inspector!
E o investigador lá regressou ao seu posto de trabalho, encolhendo os ombros, murmurando, admirado consigo mesmo, com a forma airosa como se desembaraçou da situação. «Realmente, não é para resolver situações destas que um investigador criminal é preparado. Nunca estudei psiquiatria, pelo que ignoro se a solução dada ao caso vem ou não nos manuais. Mas lá que ela resultou, resultou! Perdoem-me os psiquiatras o eu ter metido a foice na sua seara, se é que meti. Mas o certo é que o homem lá foi, calmo e sossegado, à sua vida, cheio de gratidão por o ter salvado de um linchamento».
Bom, pelo menos, por uns tempos, aqueles “agressores” não haveriam de voltar a persegui-lo. Livrara-o, pois, de um linchamento cuja ameaça era para ele tão real, quanto o era para si o nada disso se estar a passar. Mas o certo é que , neste caso, foi à sua porta que bateram a pedir tal tipo de ajuda.
Autor,
Miguel Henriques
[1] Publicado em “Um Outro Olhar, Antologia I, Poesia, Contos e outras narrativas”, edição da Polícia Judiciária, 1998. Baseado em factos reais.
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