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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

ATERRORIZADO

ATERRORIZADO[1]

Decorria a hora de almoço, quando a campainha do palacete da Pereira Reis, onde funcionam instalações da Polícia Judiciária do Porto, soa insistentemente. Pelo videoporteiro, o inspector de serviço pôde descortinar a silhueta de um cavalheiro que aparentava os seus cinquenta e tais, exibindo um minúsculo cartão que, todavia, lhe não fora possível identificar. Perguntou quem era, e a resposta não tardou, disparada de súbito, em tom de súplica desesperada.
– Por favor, deixe-me entrar, senhor inspector! Estou a ser perseguido por uma corja de bandidos que me querem matar.
– Não querem lá ver que é mais um daqueles dementes que andam por aí a bater nas costas das pessoas, junto às paragens doa autocarros, a pedir cigarros ou «uma esmolinha por alma de quem lá tem»! A culpa disto tudo é de quem instalou a Polícia Judiciária nas proximidades do Conde de Ferreira – murmurou o investigador. Porém, fingindo não ter entendido a súplica, insistiu:
– Faça o favor! O que é que o senhor deseja?
E o indivíduo, ofegante, volta à carga, no mesmo tom de desespero:
– Abra-me depressa a porta, senhor inspector, senão eles matam-me!
Apercebendo-se do medo que o transia – afinal, os loucos também sofrem! –, o investigador manda-o entrar e permanecer encostado ao portão, da parte de dentro, onde ninguém, seguramente, lhe faria mal, até que alguém o fosse atender. Seguidamente, abre-lhe o portão através do comando electrónico, e eis senão quando vê entrar, de rompante, ar assustadiço, um sujeito de compleição física razoável, na casa dos quarenta, de cartão entalado entre o indicador e o polegar direitos, bem içado para que toda a gente o visse, olhando insistentemente para trás, completamente aterrorizado. Avançou uns metros e aguardou por ali, sondando com o olhar o prédio, de alto a baixo, e suas imediações, na expectativa de vislumbrar alguém que se apressasse a vir em seu socorro.
Fechado o portão, o inspector assoma à janela do 2.º piso, de onde, para o tranquilizar, o aconselha a ter calma, pois ali ninguém lhe fará mal, prometendo-lhe descer de imediato para o atender. E, absolutamente em pânico, o cavalheiro volta de novo a exibir-lhe o minúsculo cartão que, de lá do alto, obviamente, o inspector nunca poderia identificar. Contudo, apesar da distância, ainda pôde perceber pelas suas palavras trémulas de pavor, a corroborar a identificação, que era reformado das Actividades Económicas.
Desceu ao seu encontro, deparando com um indivíduo verdadeiramente possesso, mascando umas pastilhas, provavelmente medicinais, que exalavam um intenso hálito desagradável e apresentando os cantos da boca orlados de uma matéria esbranquiçada. Verificou o tal cartão, confirmando a identidade que já lhe havia fornecido verbalmente.
– Com que então, querem matá-lo, é, esses bandidos? – indagou o investigador, simulando ter acreditado, uma vez que a intuição já lhe havia feito o diagnóstico.
– Querem, sim, senhor inspector. Acuda-me, por favor! Está lá fora um batalhão de indivíduos armados até aos dentes; aquilo é metralhadoras, caçadeiras, punhais, e olhe, vieram a perseguir-me até aqui e querem matar-me – e sem que conseguisse acabar de tartamudear a frase, embargou-se-lhe a voz, numa acentuada lividez, os lábios frementes de emoção.
«Bem me palpitou que deveria ser mais um esquizofrénico que se enganou na porta. E logo havia de me tocar a mim este petisco», murmurou o inspector.
– E então o que é que, afinal, esses malandros todos lhe querem?
– Querem matar-me, senhor, pois o que é que hão-de querer?!
– Eu sei! Mas não foi isso o que eu perguntei! Porque é que, afinal, eles o querem matar? O que é que o senhor lhes fez?
– Nada. Eu não lhes fiz nada. E olhe que já vêm atrás de mim desde o Hospital Conde de Ferreira!
Conde de Ferreira! Afinal, se dúvidas havia…
Dizer-lhe que não, que aquilo era uma alucinação ou coisa que o valha era o mesmo que estar calado; ou pior ainda: para ele, o louco passaria, com toda a certeza, a ser o inspector, e iria interpretar a sua atitude como má vontade ou um expediente para o despachar, em vez de lhe dar ouvidos e tentar ajudá-lo. Não. Deixou-se entrar no jogo, mostrando-se empenhado em ajudá-lo. Insistiu em querer saber mais pormenores do ataque e das razões que o motivaram, para, depois, agir em conformidade.
– Olhe, eu fui agente das Actividades Económicas, e tive um chefe que estava sempre a entornar. Como sabe, a gente visitava muita casa, e eu, para não ficar mal ao pé dele, é claro, deixei-me ir na onda.
– Já estou a ver o filme! Copofonia, não é verdade?
– Infelizmente, senhor inspector. Comecei a beber, a beber, e olhe, escusado será dizer que, quando dei por mim, estava um alcoólico crónico. Fui ao médico, que me deu um remédio para me desintoxicar, e olhe, deu nisto. Fiquei assim, lerdo das ideias, pelo que não tive outro remédio senão reformar-me. Fui mandado para o Conde de Ferreira. Agora, ando lá nas consultas.
– Hm! Hm!
– Sabe, eu vivo sozinho num quarto alugado, perto da Praça da República. Às vezes, saio de casa e, como não tenho que fazer, dou umas voltas por aí, para ir passando o meu tempo. Hoje, encontrei um sujeito, no jardim do Marquês, que meteu conversa comigo, e como não tinha que fazer e era dia de ir à consulta, pedi-lhe que me acompanhasse. Ele aceitou, sem me criar qualquer problema. Só que, quando eu estava a ser visto pela médica, e não sei por que carga de água, disse-lhe que eu era homossexual. E olhe, não é que ela não só já não acabou a consulta, como me disse que não queria mais nada comigo!
– Pô-lo na rua, com alta forçada, foi?!
– Pois foi. Mas o pior foi o que veio a seguir. Como se isso não bastasse, o fulano arrebanhou um grupo de indivíduos, todos armados – aquela seita que está lá fora! –, e que se puseram a perseguir-me rua fora até aqui. Se não fosse o senhor abrir-me ao portão para me proteger, não sei o que é que me poderia ter acontecido! Ai não sei, não!
– Tenha calma, homem! Aqui, está em segurança, ninguém lhe vai tocar. Sossegue, que eles não lhe vão fazer mal. Eu vou já tratar de os ensacar. Vou já telefonar para a Esquadra daqui da zona, e vai ver que eles passam tudo a pente fino num instante e tudo o que encontrarem levam, pelo que o senhor já vai poder regressar a sua casa, são e salvo, com toda a segurança. Certo? Aguarde aí, por favor!
– Agradeço-lhe imenso, do fundo do coração, senhor inspector. Olhe que esses bandidos, se me apanham, matam-me. Mas é que matam mesmo! Não tenha a menor dúvida!
– Ai lá isso, pelos vistos, meios não lhes faltam! Bom, fique descansado. Aguarde aqui, que eu vou já tratar disso.  
E o agente voltou a subir ao 2.º piso, refastelar-se na cadeira e acabar de ver na TV o noticiário das treze, que aquela aflição lhe havia forçado a interromper. Passada cerca de meia hora, tempo que calculou suficiente para a operação de limpeza à zona, e terminado o noticiário – ou será que os loucos não têm a noção do tempo? –, desceu novamente junto do perseguido, encontrando-o completamente transfigurado para melhor, obviamente: completamente relaxado, tendo a sua lividez cedido lugar a um leve rubor.
– E então, senhor inspector, eles sempre os apanharam?
– Tudo! Apanharam-nos todos, sim, senhor. E olhe que, afinal, o senhor tinha toda a razão! Era realmente um batalhão deles. Creio que levaram daí meia dúzia de furgões completamente a abarrotar. Só de armas encheram eles uma ramona!
– ‘Tá a ver, ‘tá a ver! Eu não lhe dizia?! Eu sabia que tinha razão. Não querem acreditar em mim!
– Pronto, agora é que pode ficar completamente descansado. Foi tudo limpo.
– Estou-lhe imensamente grato, senhor inspector.
– Bom, e agora para onde é que o senhor vai?
– Vou para minha casa.
– E por onde é que está a pensar ir?
– Aqui pela Costa Cabral, ao Marquês, Constituição…
– Não! Não vá por aí! Preste atenção ao que lhe vou dizer: vá antes aqui por trás, pelo campo do Salgueiros – sabe onde é? –, sobe a Álvaro de Castelões, vira para a rua do Bolama… É mais seguro. Não vá, às vezes, o diabo tecê-las. É que não vá dar-se o caso de ter ficado por aí algum esquecido e…
– Sei, sei, conheço muito bem esse caminho. Muitíssimo obrigado, senhor inspector!
E o investigador lá regressou ao seu posto de trabalho, encolhendo os ombros, murmurando, admirado consigo mesmo, com a forma airosa como se desembaraçou da situação. «Realmente, não é para resolver situações destas que um investigador criminal é preparado. Nunca estudei psiquiatria, pelo que ignoro se a solução dada ao caso vem ou não nos manuais. Mas lá que ela resultou, resultou! Perdoem-me os psiquiatras o eu ter metido a foice na sua seara, se é que meti. Mas o certo é que o homem lá foi, calmo e sossegado, à sua vida, cheio de gratidão por o ter salvado de um linchamento».
Bom, pelo menos, por uns tempos, aqueles “agressores” não haveriam de voltar a persegui-lo. Livrara-o, pois, de um linchamento cuja ameaça era para ele tão real, quanto o era para si o nada disso se estar a passar. Mas o certo é que , neste caso, foi à sua porta que bateram a pedir tal tipo de ajuda.

Autor,
Miguel Henriques




[1] Publicado em “Um Outro Olhar, Antologia I, Poesia, Contos e outras narrativas”, edição da Polícia Judiciária, 1998. Baseado em factos reais.




MARIA... SIMPLESMENTE!

MARIA… simplesmente!



Ar assustado, um tanto combalido, sondou com o olhar os circunstantes, à medida que avançava timidamente o passo, acabando por dirigir-se àquele que primeiro lhe surgiu pela frente com uma chapa pendurada na lapela e que lhe pareceu ter dado pela sua presença.
– Provavelmente, será alguém que está aqui para atender o público! – comentou com os seus botões.
O que significava aquele penduricalho na lapela ela não o podia saber, pois, infelizmente, saber ler era um luxo dos mais novos e de alguns privilegiados, mais antigos, que nunca fora permitido às suas quase cinco dúzias de anos.
– Quase cinco dúzias, senhor, olhe que é quanto já conta esta miséria que aqui tem à sua frente! – veio a esclarecer, momentos depois, ao agente, já no decurso da sua pungente narrativa.
Seria ali, naquele cubículo fumegante, empestado de nicotina, a tresandar a fuligem encardida, com uma secretária alagada em telefones e papéis avulsos, rodeada de aperaltados cavalheiros, todos enfatuados e fingindo-se de bem dispostos, que funcionava o tal serviço de piquete para onde a havia mandado o funcionário que a havia recebido à entrada?
– Faça favor, minha senhora! – acode, solícito, um dos agentes, o tal da chapinha ao peito, a quem, felizmente, a disposição para o trabalho e o cumprimento do dever não haviam turvado ainda a visão nem entorpecido a disponibilidade e a sensatez.
– Eu queria apresentar uma queixa, meu senhor, desculpe, mas eu não sei como é que o hei-de tratar!
– Por agente, minha senhora, trate-me por agente, que é a minha categoria, aqui dentro, e daí a razão pela qual aqui estou. É verdade, estou aqui, exactamente, para a atender, tal como a todas as pessoas que cá vierem. Vá, vamos lá, faça o favor de dizer, pretende então apresentar uma queixa, é?
– É, sim, senhor Agente, é isso mesmo, só que, desculpe, mas eu nem sei como é que hei-de começar!
– Não há problema, a gente ajuda no que for necessário. Ora, então, faça favor, tenha a bondade de me acompanhar. Vamos antes aqui para esta salinha, que é para podermos conversar mais à vontade – convidou, na mesma solicitude, o investigador, homem quarentão, temperado nas agruras da vida e habituado a escarafunchar no entulho social, enquanto a ia conduzindo para a comummente designada “sala das queixas”.
– Ora vamos lá, faça o favor de me dizer, então, qual o motivo da sua queixa! – perguntou o investigador, enquanto ia puxando de uma cadeira e a ajeitava para que a senhora se sentasse.
E a senhora, de ar desconfiado, após ter agradecido a delicadeza, inspeccionou, num relance, todo o espaço circundante, interrompendo momentaneamente o discurso para perscrutar o outro lado do biombo, não fosse alguém ouvir aquele chorrilho de poucas-vergonhas que tinha para contar. É que, falar mal de um filho, é consabidamente uma espécie de faca de dois gumes, tanto pode envergonhá-lo a ele, como àqueles que tiveram a responsabilidade de o criar e educar.
           – Olhe, senhor Agente, eu sou viúva há vinte anos. O meu marido, que Deus lá tenha em descanso, morreu em Espanha, num acidente, coitadinho! Sabe, era camionista! Deixou-me sozinha, sem emprego e com dois filhos pequenos, ainda crianças, para criar, a viver de uma pensão de miséria, mil e tal escudos, está a ver, senhor Agente, mil e tal escudos… Bom, mas também é verdade que isso já foi há vinte anos! Sabe, é que eu já tenho quase cinco dúzias deles, quase cinco dúzias, senhor, é quanto já dura esta miséria que tem aqui à sua frente. Olhe que, como o senhor pode ver, eu já estou em metade daquilo que era, não em altura, porque, aí, eu sempre fui assim uma atarracadinha, mas, em largura, eu já fui bastante forte, senhor, olhe que já cheguei a pesar sessenta e tal quilos, ah! Hoje, coitada de mim, não passo dos 40, se é que lá chego. Como vê, estou quase só pele e osso, um farrapo humano e, ainda por cima, doente e sem poder trabalhar.
         E o agente lá foi ouvindo, atentamente, o profuso desfiar de todo um rosário de lamentações e angústias, jorrado em catadupa da boca daquele frágil ser humano, de ar enfezado, esquelético, pele encarquilhada, olhitos escondidos, refluindo um brilho baço da profundeza das órbitas, por detrás das pálpebras ressequidas, em seu pouco mais de metrito e meio de altura.
           – Então, e depois? Vá, conte lá! É que, afinal, ainda não me disse exactamente porque é que cá veio?!
         – Olhe, senhor Agente, desculpe o tempo que lhe estou a tomar, mas eu tenho de lhe contar toda a história, para ver se me compreende e me pode ajudar.
         – Com certeza, dona… desculpe, creio que ainda me não disse qual é a sua graça?!
         – Maria, senhor. Chamo-me Maria.
      – Só Maria?! – indagou o agente, lançando um olhar sub-reptício ao papelinho que o segurança lhe havia dado à entrada, apercebendo-se de que do nome constava algo mais.
        – Só Maria! Maria… simplesmente, até faz lembrar aquele folhetim que antigamente passava na rádio, lembra-se? Se calhar, não, o senhor ainda é muito novo! – insistiu.
       – É claro que lembro, mas… simplesmente, porquê?
       – Simplesmente, porque… é que, sabe, afinal, o meu nome completo até é Maria Jorge, mas como Jorge é nome de homem, eu costumo dizer que sou Maria… simplesmente.
       – Bom, mas, Marias com nome de homem, há, como sabe, tantas: Maria João, Maria José, Maria Manuel…
       – Pois há, lá isso é verdade, mas eu cá é que não gosto nada de ser Jorge!
       – Mas olhe que, cá para mim, Jorge até é um nome bonito, mas, pronto, tem todo o direito de não gostar, os gostos não se discutem, não é assim? Vá lá, então, dona Maria, conte lá o que é que a trouxe por cá.
       – Olhe, senhor Agente, uma rapariga nova, acabadinha de entrar nos quarenta, livre, mas com dois filhos para criar… enfim, sabe como são estas coisas! Apareceu-me um homem de quem eu gostei, e que gostou de mim, também, e, olhe, resolvemos juntar os trapinhos, como se costuma dizer. Juntámo-nos e passámos a viver em minha casa, pobrezinha, é certo, mas era – era e é! – a minha casa, e só nos não casámos por causa de eu não perder a reformazinha do meu falecido, era pequena mas sempre era alguma coisa e onde ela tapava... E, então, olhe, tivemos uma filha, uma menina muito linda que anda já nos 18 aninhos, coitadinha, começou este mês a trabalhar como ajudante de cabeleireira, a ganhar trinta e tal continhos por mês, está toda contente, é pouco, mas, coitadinha, vai ser o seu primeiro ordenadinho! E sabe, senhor Agente, é como se costuma dizer: buraco que aquele tapar… Não vai ser preciso outro, não é verdade?
        – Isso é só no início, dona Maria, com a prática, há-de vir a ganhar mais, com certeza, vai ver!
        – Pois é, senhor Agente, mas eu é que estou cheínha, cheínha de medo, sabe?!
        – Medo de quê, dona Maria?
        – Daqueles malandros dos outros meus dois filhos, são muito ruins, sabe?!
        – Ah, sim, degeneraram, às vezes, acontece. Que idade é que eles têm?
       – O mais novo tem 26, e o mais velho já anda creio que nos 33, mas são uns vagabundos! O mais novo ainda vá que não vá, que, quando me vê aflita, ainda é capaz de ter pena de mim e de dar uma mãozita, a ajudar, agora o outro… Aquilo é mas é o diabo em pessoa que entrou lá em casa, meteu-se na droga, e olhe, não só não faz nada, como, ainda por cima, me rouba tudo, aquele desalmado! Rouba-me tudo, tudo! Depois, e como se isso lhe não bastasse, ainda me insulta de tudo e mais alguma coisa. Aquilo é do piorio, de curta pra cima, curta pra baixo, e constantemente a ameaçar-me de que, se lhe não der dinheiro, um dia destes ainda me há-de matar. Alega que, como sou mãe dele e já que o trouxe ao mundo, eu é que tenho a obrigação de o sustentar, portanto… E olhe, senhor Agente, se alguma coisinha vou arranjando para comer é porque, graças a Deus, ainda vai havendo gente boa, pessoas amigas que me têm ajudado com uma ou outra esmolinha, é que eu não posso trabalhar. Com licença, está a ver aqui esta costura? – e, desabotoando a blusa, exibiu um segmento da cicatriz que lhe atravessava o esterno, de alto a baixo. – Fui operada ao coração, há pouco mais de um ano, olhe que até me chegaram a tirar veias das pernas para meter aqui, no meu pobre coraçãozinho. Se não fosse operada, já aqui não estava a esta hora, não sei se está a ver?! Mas olhe, afinal, e vendo bem as coisas, nem sei o que é que teria sido melhor! Eu já estava desenganadinha dos médicos, não me davam mais de três meses de vida, andava sempre a desmaiar, a desmaiar, tinha as minhas veias atrofiadinhas, tão apertadinhas, segundo eles diziam, que o sangue já mal podia circular!
         – Pronto, mas, felizmente, agora, já não tem esse problema, pois não?!
       – Graças a Deus, senhor Agente, graças a Deus, já que a gente tem de estar viva e tem… Só que eu não posso é trabalhar, ando pela Conferência([1]). Mas… tenho vergonha, muita vergonha, senhor, olhe que passam-se dias e dias em que não sei o que é levar uma migalhinha à boca, e aquele malandro a roubar-me, a insultar-me e a ameaçar-me, todo o santo dia! Olhe que, num destes dias, se eu me não tivesse precavido, dando um salto para trás, tinha-me partido ambas as pernas com um pau que me atirou, aquele malandro!
        – Se assim é, tem em casa uma rica prenda, lá isso tem, sem dúvida!
       – Mas oiça, senhor Agente, há dias – Deus Nosso Senhor me perdoe –, mas olhe que ainda cheguei a pensar que ele se tinha matado!
       – Como assim?
       – Olhe, abri a porta do quarto e encontrei-o sobre a cama, muito quietinho, virado para o ar, em tronco nu, com uma seringa e a agulha espetada na barriga. Ainda pensei cá para comigo: ó meu Deus, será que foi desta vez que ele me deixou em paz? Vai ser um descanso! Desculpe falar assim, não sei se tem filhos, mas olhe que foi mesmo o que eu pensei! Fiquei cheínha de medo e fechei a porta, mas, pouco tempo depois, já aquele malvado lá andava outra vez a cirandar no quarto. E eu que tantos sacrifícios passei para o criar… Agora, o meu maior medo é que eles façam mal à menina, à meia-irmã, olhe que, cá para mim, são muito capazes, até, de abusar dela, aqueles bandidos. E agora se lhes cheirar a dinheiro fresco… Não sei não como é que vai ser, não…
        – E o que é feito do tal senhor com quem a senhora disse que vivia, o pai da rapariga?
       – Esse, coitado, cansou-se de aturar as patifarias dos meus filhos e foi para casa dos pais dele. Agora, veja o senhor, sem o meu homem, sem poder trabalhar, sem rendimentos, com aqueles malandros a roubarem-me tudo, o que é que há-de ser de mim? Olhe que a minha fraqueza é tão grande que estou a olhar para si e até parece que estou a ver duas pessoas à minha frente! – e fez uma pausa, olhar embaciado e prostrado no chão, quiçá rebuscando mentalmente as algibeiras, o estômago a dar horas, envergonhada por ter deixado escapar aquele lamento – Ainda se ao menos eu tivesse um pãozinho, mesmo que fosse sequinho, para comer…
        Condoído, o agente não se conteve, puxou da carteira, sacou uma nota de quinhentos mil réis e meteu-lha na mão.
        – Tome lá que é para comer uma sanduíche, antes de chegar a casa.
      – Obrigada, muito obrigada, senhor Agente, mas não, não quero. Não, não posso, eu acho que não devo aceitar.
       – Mas acha que não deve aceitar, porquê? Vá, faça o favor, deixe-se disso, é pouco, mas olhe que é de boa vontade!
       – Muitíssimo obrigada, o senhor escusava de se estar a incomodar comigo, Deus lhe dê muita saúde e à sua família, senhor Agente.
      – E a si também, dona Maria, muito obrigado.
    – Olhe que, às vezes, nem sei o que é que me apetece fazer, senhor! Passa-me cá cada coisa pela cabeça…
   – Vá lá, vá lá, dona Maria, tenha calma, muita calma! Eles não merecem esse sacrifício. Vai ver que melhores dias hão-de vir, se Deus quiser!
      – Não sei, não sei, senhor Agente, o que ainda me pode vir a acontecer!
Daqueles olhos ressequidos pareceu ressumar um arremedo de lágrimas carminadas, mas a verdade é que um corpo tão estiolado pelos malefícios da vida não podia dar-se ao luxo de esbanjar fluidos.
      E lá se foi a dona Maria Jorge, aliás, Maria… simplesmente, muito provavelmente, calcorreando a pé os quilómetros que a separavam de Gondomar, donde disse ter vindo pelo mesmo meio. Mulher que, por ironia, tinha no nome um nome de homem. Homem que por razões estranhas à sua vontade, dela, a deixou só, para ir viver com os pais, numa atitude, quiçá egoísta, mas que ela sempre procurou compreender. Talvez por isso, sem que se desse conta, se recusava a admitir o apelido Jorge, nome de homem, no seu próprio nome, porque, afinal, os homens da sua vida, o que é que haviam significado? Abandono, sacrifício, violência…
      O agente lá rematou como pôde a situação. Visivelmente emocionado, dirigiu-se para o tal cubículo, onde se encontrava o chefe e outros colegas baforando fumo no rescaldo de mais uma jornada de futebol a alimentar o ócio.
       – Chefe, mais casos destes, hoje, e bem fico depenado!
       – Então? O que é que se passou?
     Posto ao corrente da situação, o chefe limitou-se a lavar as mãos, num eloquente encolher de ombros. Porém, um colega menos comedido, de lá do alto da sua presunção, não contém o sarcasmo e, por entre duas sobranceiras baforadas, proclama:
      – Já estou a ver, pá, foste comido de cebolada! Cá para mim, caíste que nem um patinho!
     – Não, meu caro colega, com todo o respeito devido à tua perspicácia, que alguma há-de ser, de outro modo, muito provavelmente, não estarias aqui, reconheço que posso ser ingénuo, o que não quer dizer que o tenha sido neste caso, mas julgo não ser assim tão lorpa, como parece quereres fazer crer. Ah! E já agora outra coisa: acima de tudo, sou humano; ou então, se porventura te der mais gozo, ingenuamente humano!
     – Hum, hum! – resmungou entredentes o outro.


Porto, Maio de 1993

(Baseado em factos reais)

O autor:
Miguel Henriques




([1]) Alusão à Instituição de Beneficência conhecida por Conferência de S. Vicente de Paulo.

O PREÇO DA MUDANÇA

O PREÇO DA MUDANÇA(1)

Estava-se no verão. Tempo de férias. A tarde quente, entorpecedora, convidava os poucos funcionários ao serviço a uma apatia sonolenta, fruto também de uma ou mais noites mal dormidas, a que o carácter permanente da profissão inelutavelmente obriga.
No gabinete do chefe da brigada, homem já entradote nos anos, servindo a instituição desde a sua origem, guardando ainda consigo os preconceitos de uma geração ida que se viu historicamente ultrapassada, cujo ritmo evolutivo não acompanhou, acontecera um daqueles «briefings» espontâneos em que tudo se discute e nada se decide, desde o ponto da situação do serviço, ao facto insólito e hilariante que ocorrera algures, concitando a atenção geral, passando pelo desaire da equipa X, no encontro de futebol de véspera cujo árbitro foi o culpado do mau resultado obtido, ou então, o treinador que já deveria ter ido embora, etc..
Na vala comum – era assim que humoristicamente se designava a pequena sala onde uma boa meia-dúzia de pesadas e obsoletas secretárias de madeira se acotovelavam, servindo de mesas de trabalho a outros tantos agentes policiais – separada daquele gabinete por uma porta de vaivém envidraçada, apenas o agente Jano se ocupava, pondo em ordem o serviço que, em catadupas, lhe foi distribuído e, mau grado tamanho esforço, via acumular, impotente para responder às exigências estatísticas que, dada a especificidade do trabalho de investigação, sempre considerou o maior inimigo da qualidade.
O telefone toca. Da portaria, informam que acaba de se apresentar ali um indivíduo de nome Aretino, sendo portador de um aviso de notificação, convocando-o para prestar declarações naquela hora.
Jano manda-o subir, imediatamente.
– Dá-me licença? – pergunta Aretino, após três quase surdas pancadas na porta, com os nós dos dedos.
– Faça o favor de entrar! Sente-se aqui, nesta cadeira! – convida Jano, chegando-lha.
– Sabe porque é que cá foi chamado?
– Penso que sim! – responde, timidamente, Aretino.
– Não matou ninguém? – graceja Jano, procurando desinibir um pouco Aretino, desdramatizando a razão de ali estar.
– Não, senhor Agente. Deve ser por causa de uma «pedrita de chocolate» para fazer um «charrito» que uns agentes me apanharam e que tinha comprado por duzentos escudos ao Ivan, na Praça do Marquês.
– De chocolate ou de haxixe?  – indaga Jano, simulando ignorar o calão.
– Sim, de haxixe; eles é que costumam chamar-lhe chocolate! – precisa Aretino.
– Ora, é isso mesmo! Conte lá, como é que isso se passou?
– Bom, eu tinha acabado de receber das mãos do Ivan o pedacinho, quando, de repente…
Aretino, nos seus imberbes dezasseis anos, relata minuciosamente todo o incidente, denunciando um enorme sentimento de culpa, como quem se penitencia por ter cometido algo de extremamente grave e socialmente repugnante. Andava a estudar, e não queria, de modo algum, ficar marcado pela prática de um acto que, ao que via, era tão banal entre os seus companheiros, que nunca imaginou ter podido vir a causar-lhe tamanhos calafrios e complicações, porventura, estigmas indeléveis para toda a sua vida.
Estava decididamente arrependido e tinha vergonha de encarar os seus familiares, vizinhos e mesmo professores que, provavelmente, até terão lido a notícia nos jornais. E que sorte, mesmo assim, não tivera em não ter ficado preso, tal como acontecera ao Ivan!
A espaços, Jano interrompe-lhe o discurso, apurando pormenores sobre o seu «modus vivendi», as razões que o tentaram e dos fins que o motivaram à compra da «pedrita», a fim de melhor conhecer o seu interlocutor, para uma melhor compreensão e tratamento do caso em presença. Entre essas razões, realça dissensões familiares que pretendia superar, procurando escapar-lhes com recurso à droga inibidora e alienante.
Jano cedo conclui não estar na presença de um qualquer marginal, mas, antes, de um jovem cuja violência de paixões e ânsia de absoluta liberdade conduzem ao inconformismo e à inaceitabilidade de regras, fruto do estado de desenvolvimento psicossomático que atravessa, e que tudo pretende remover a qualquer preço. É o custo do crescimento, do desabrochar para a vida real e adversa de uma personalidade em formação. Contudo, Jano regista o relato, com isenção, sem o manipular, dando por encerrado o acto – entenda-se auto.
Seguidamente, tira a máscara de polícia e põe a de «assistente social». Faz-lhe ver quão ilusória e arriscada é a sua perspectiva; quão nocivo o «remédio» que buscou para a solução dos seus problemas. Aos que já tinha iria acrescentar um não menos grave: a toxicodependência! Alerta-o, por isso mesmo, para a degradação da pessoa humana, em toda a sua dimensão, moral, racional e física, a que o consumo de droga inexoravelmente conduz e a que acresce a circunstância de vir a ficar socialmente rotulado de criminoso, já que como crime a lei considera tal facto, sofrendo, a partir daí, todo o género de discriminação, com gravíssimas repercussões na consecução dum emprego, para assegurar a sua sobrevivência como ser autónomo. Se a sanção penal é limitada no tempo, muito mais duradoura é a sua lembrança na memória das pessoas.
Nos olhitos brilhantes de Aretino, adivinhava-se a alegria de quem descobre um tesouro e promete a si mesmo que tal facto se não repetirá.
No corredor, a mãe, que o acompanhara, aguarda a sua saída da sala, para falar com o agente.
Aretino despede-se e a porta abre-se para sair.
A mãe pede para falar com Jano.
– Era só uma troca de impressões, senhor Agente, se faz favor! – promete.
Jano anui e convida-a a entrar, enquanto Aretino a aguarda, no corredor.
Começa, então, o desfiar de todo um rosário de angústias e vergonhas pelo facto de uma família tão séria e honesta ver um seu membro envolvido em assuntos do foro policial. E o seu filho? Seria um caso perdido? É que, desde que os factos ocorreram, como que emudeceu, enclausurando-se no seu quarto, donde apenas e a custo sai para comer e ir às aulas.
– A família está toda apavorada! E ele até tem sido tão bom aluno! – esclarece, lamentando-se, a mãe.
– Não há razão para isso. Ele vai portar-se bem e recuperar o seu modo de ser normal! – tranquiliza o agente.
De repente:
– Jano!
– Sim, chefe, faça favor! – levanta-se e vai ao gabinete onde decorre o «briefing».
– O que é que essa senhora está aí a fazer?
– Estive a ouvir o filho e, agora, estou a trocar umas impressões com ela, a seu pedido, sobre o comportamento dele.
– Veja se a manda embora!
– Está bem, chefe.
Mas, subitamente, Jano adivinha algo naquela ordem delicadamente indelicada e inoportuna, para além do sentido aparente e ingénuo da expressão. Volta atrás e pergunta:
 Estou a ser preciso, chefe?
– Não.
Jano abrevia a entrevista e despede-se daquela mulher de ar abatido que acabava de mendigar ao agente um pouco de paz para a sua alma, confidenciando coisas que a mais ninguém teve coragem de desabafar, levando nos lábios um sorriso, como quem acaba de ver regressar o filho pródigo.
Na mente de Jano, martelam, contundentes, aquelas palavras áridas, lancinantes:
«Veja se a manda embora!»
Que terá pretendido o chefe dizer, se, afinal, não era uma questão de tempo e ele não estava, sequer, a ser necessário? Seria por ser uma mulher e receasse que o tema da conversa nada tivesse a ver com serviço? Ou seria pelo papel de amigo, conselheiro humano, que estava a fazer, quiçá usurpando o lugar do assistente social? Será isso incompatível com a função do polícia? Ou será, também, no momento próprio, função do polícia!
Quanto à primeira hipótese, estaria por certo posta de parte, pois, como chefe que era, deveria conhecer minimamente o seu subordinado, para saber que não era pessoa capaz de se ocupar desses assuntos, durante o serviço, e muito menos com uma mulher que tinha idade para ser sua mãe. Já quanto à segunda, haveria, certamente, razões para isso, no seu entender.
É que Jano, para além do aspecto repressivo da função policial, procura apostar na prevenção, intervindo sempre que as oportunidades se lhe oferecem ou a isso é solicitado. Acredita que um perfeito conhecimento da situação é meio caminho andado, ou mais do que isso, para a sua prevenção, tal como o médico só poderá atacar o mal, se o diagnóstico for correcto. Tudo isto, é óbvio, leva tempo e exige atenção. Sempre que nota alguma receptividade por parte do infractor, não deixa de o alertar para os perigos que corre de uma eventual reincidência e, sobretudo, para a ruína física, porventura e quantas vezes, o risco da própria vida, dos menos avisados. E tantos são os que têm sucumbido à dose excessiva, à embolia cerebral, enfim, talvez por não terem encontrado alguém que, no momento oportuno, lhes desmistificasse aquele paliativo tentador, mas, fatal. E crê que não terão sido ridículos, ingenuamente ridículos, os seus conselhos e advertências, se, ao fim da sua carreira profissional, pelo menos um ser humano lhe tenha prestado atenção e retrocedido na sua senda para a morte prematura, recuperando-se para a convivência sadia, em sociedade.
Será Jano, que assim pensa e age, um intruso na instituição policial que serve? Será um não-polícia, um usurpador do lugar de terapeuta, do psicanalista, do psiquiatra ou do assistente social?
Ele sabe, por experiência, apesar da sua ainda não muito longa carreira profissional, que, frequentemente, a primeira porta a que se bate é à do agente da autoridade, habituado que está a lidar com essas coisas. Por isso mesmo, ele deverá ser, também, o confidente, o amigo e conselheiro experiente, capaz de apontar vias para a solução dos problemas, apto a dirigir palavras de estímulo e de esperança, enfim, pronto a dar um pouco da atenção que todo o ser humano reclama e merece.
Porque assim pensa, nunca deu por perdido esse tempo, rejeitando demitir-se de tal tarefa, recusando-se a continuar a imagem drástica e exclusivamente repressiva do agente policial sisudo, mauzão, medindo todos os infractores pela mesma bitola, utilizando como referência ou medida-padrão o já velho e recalcitrante cadastrado.
Sempre que do outro lado da sua secretária se senta um homem, ouve-o como tal, assumindo o papel de agente da autoridade – e não autoritarista –, que em sua mente concebeu como o melhor.
Refuta a imagem do polícia-puro-instrumento-de-repressão, grosseirão, implacável, indiferente aos problemas humanos; aquele com que sempre se assustaram as criancinhas, quando não comiam a sopa ou se portavam mal. Esse cedeu o lugar ao cívico, àquele que está ao lado dos bons, sempre que a sua ajuda é reclamada, nos momentos de crise, na sua luta contra os maus, os violadores da esfera jurídica alheia.
O seu grande lema é: «vale mais prevenir que remediar!». E essa prevenção, em seu entender, deverá começar pelos bancos da escola, evitando-se prejudiciais aventuras, riscos desnecessários, destruindo-se falsos mitos. Impõe-se uma acção pedagógica, junto dos incautos, que não cabe especialmente ao agente da autoridade, é certo, ajudando-os, se possível, na resolução dos seus conflitos, sensibilizando-os para o problema avassalador em que se tem vindo a tornar, por exemplo, o abuso da droga, qual surto epidémico que a todos compete ajudar a debelar, torná-los participantes activos na tarefa da defesa da liberdade e segurança, bem como da preservação dos valores sociais, o que cabe, genericamente, a cada um, e à Polícia, Tribunais e outros entes públicos em particular.
Esta tarefa via-a ele na penumbra, quando concebeu o seu próprio modelo de agente da autoridade, redescobrindo-a, assumindo as suas próprias exigências, tornando-se indiferente a todos os velhos sofismas.
Quando tal se tiver conseguido, criando-se uma imagem generalizada do agente da autoridade como um amigo, um verdadeiro garante da liberdade e da segurança individual e colectiva, talvez, nessa altura, ele venha a ser mais acarinhado e menos visto como o carrasco, o «mau da fita», de quem as criancinhas sempre fugiram.
Hoje, Jano está absolutamente convicto, quiçá orgulhoso, por ter sido mais um tijolo na edificação de uma Polícia moderna e de face humanista, nunca perdendo de vista a ideia de que, por detrás do criminoso, lá bem no âmago, há sempre um ser humano passível de recuperação.

Autor:
Miguel Henriques (Rodrigues)




[1] Publicado no n.º 22, da Revista de Investigação Criminal, Março de 1987, edição do Centro de Cultura e Desporto da Directoria do Porto da Polícia Judiciária. Baseado em factos reais.


A CULPA É DO SISTEMA


A CULPA É DO SISTEMA[1]

– Socorro! Ó senhor Polícia, acuda-me, por favor! Fui agora mesmo assaltada, ali, na rua. Veja só, o estado em que aquele bandido me deixou!
– De facto, não é nada agradável! Mas conte lá como foi e faremos o possível por apanhá-lo. Vá lá, conte!
– Olhe, era um indivíduo baixo, cabelo desalinhado, de pele escura, aparentando uns dezasseis anos…
– Está bem, está bem. Fico com estes dados e espero poder identifica-lo, o mais rapidamente possível.
Alguns dias passaram, até que, esbaforida, a Dona Sociedade volta ao departamento policial.
– Senhor Polícia, senhor Polícia, isto é de mais! O ladrão daquele indivíduo, de que lhe falei há dias, acaba de me entrar em casa. Surpreendi-o em pleno trabalhinho.
– E então, agarrou-o?
– Quem? Eu? Era o que faltava! Ainda me levava a mim, também!
– Usou de alguma violência para consigo?
– Não, senhor! Até foi simpático! Agradeceu e tudo! Por acaso, até tive sorte! Um colega seu que anda perto ouviu-me gritar «agarra que é ladrão!» e prendeu-o, devolvendo-me todos os meus pertences.
– Até no tipo de ladrão que nos toca é preciso ter-se sorte! – comenta o Polícia num aparte.
– Então, e agora o que é que lhe vão fazer?
– Olhe, minha senhora, vai ser presente ao Juiz de Instrução Criminal, para validar e manter ou não a sua prisão, já que foi apanhado em flagrante delito.
– Oxalá fique preso por uns tempos esse vadiote, para se poder andar à vontade.
No dia seguinte:
– Ouça cá, senhor Polícia: afinal, o gatuno de ontem já hoje se cruzou comigo, ali na rua, e sabe o que me fez? Veja aqui estas manchas no braço! Pelos modos, até parece que estava drogado!
– De facto, o Ratinho é um toxicómano já nosso conhecido.
– É o quê?
– Um toxicómano!
– E o que é isso?
– Não sabe?! É um consumidor de droga, um drogado.
– Hum! Bem me queria parecer!
– Mas diga lá: foi preso?
– Por acaso, foi! Gritei, e um colega seu acorreu em meu socorro, apanhou-o e levou-o. E agora, o que é que lhe vão fazer?
– Vai ser presente ao Juiz de Instrução Criminal, como da outra vez.
– A quem? Ao mesmo que o soltou ontem?
– Poderá ser ou não o mesmo. Isso não interessa.
– Mas para quê?
– Para manter ou não a prisão. Já sabe como é…
– Bom, vamos então a ver se sempre é desta!
Porém, mal chega à rua, depara com o mesmo indivíduo, agora a assaltar um automóvel. Volta junto do Polícia e manifesta-lhe a sua surpresa pelo facto de o ver em liberdade, outra vez.
– Olhe, senhor Polícia, pensando bem, nem sei se vale a pena incomodar-vos. Veja só: o tratante já está ali, outra vez, a assaltar um carro. Não acha que é de mais?!
– Bom, de mais ou de menos, se ainda lá está, há é que o “amarrar”, outra vez.
Corre para o local indicado pela Dona Sociedade e surpreende-o, já a acabar o “servicinho”, com um rádio-leitor e um casaco de couro contendo dinheiro e alguns documentos, acabados de furtar do veículo.
– Com que então, nosso heroizinho, outra vez a pisar o risco!
– Que é que quer que eu faça? O meu pai está separado da minha mãe. Vivo com ela que apenas recebe uma mísera pensão de invalidez que mal dá para pagar a água, a luz e a renda do “barraco”. Ainda por cima, tenho dois irmãos mais novos que eu, a pedir pão!
– Então, e tu não sabes pedir trabalho?
– Pedir sei eu! Só que não sei é trabalhar! Nunca me ensinaram a fazer o que quer que fosse. Ainda há dias me fui oferecer a uma fábrica e sabe o que me disseram?
– …..
– Que fosse bater a outra porta, que empregados já tinham demais; os trabalhadores é que eram poucos e que eu não tinha físico, nem cara de trabalhador!
– Assim, ao alto, é que te não safas. Lá vais ter de ir para o “saco”, outra vez. Nem Deus nem Sant’Antoninho te acode. Vais ver!
Na realidade, assim aconteceu. A prisão foi confirmada e mantida, sendo o Ratinho enviado para a cadeia, onde ficou a aguardar julgamento, sem admissão de caução. De qualquer dos modos, não se iria sentir só, porquanto, nesse mesmo estabelecimento prisional, havia já para cima de meio milhar de presos de ambos os sexos e de diversos escalões etários, rotulados com toda a gama de crimes.
Volvidos que foram alguns meses, já mais “profissionalizado”, através dos conhecimentos adquiridos nos “comícios” improvisados para quebrar a monotonia, naquelas longas horas de lazer, dentro da prisão, o Ratinho é chamado a julgamento, onde teve de se explicar.
Atenta a sua idade, a confissão espontânea, e ponderadas as circunstâncias atenuantes e agravantes, acabou por ser condenado numa pena que ele próprio considerou benévola, saindo em liberdade condicional pelo período que lhe restava cumprir.
Uma vez cá fora, ainda tenta arranjar emprego, mas os potenciais patrões, não descurando  sempre um inqueritozinho ao passado do candidato, acabam, inevitavelmente, por saber das suas prisões, rejeitando-o e aconselhando-o a ir bater a outra porta – e porque não?! – à da esquadra mais próxima.
E, é neste desespero, que o Ratinho se lembra das conversas tidas nas longas horas de ócio, no interior do estabelecimento prisional, com os companheiros de ocasião. Aquelas aventuras, enfaticamente narradas, faziam-lhe ferver o sangue dos seus dezassete anos. A vida na prisão é difícil, ele bem o sentira na pele, mas o seu viver não era vida, especialmente, para um jovem marcado pelo crime que, segundo pensava, era obrigado a cometer. Porque não tentar um assalto a um banco? Já agora, era mais um menos um e podia ser que até nem fosse descoberto. Além disso, se o “bolo” fosse bom, montaria um negócio, enfim, uma coisa qualquer que o não obrigasse a pedir trabalho aos outros e abandonaria, definitivamente, a senda do crime.
De qualquer das maneiras, para a execução de tal plano, era necessário uma arma para si, dois automóveis, pelo menos, e mais uns três comparsas.
Contactou, então, os seus velhos “mestres” da prisão, já em liberdade, em consequência da amnistia entretanto decretada e propõe-lhes o plano que pormenorizadamente lhes expõe.
Acertados alguns pormenores que a experiência dos “mestres” não deixou passar em claro, combinam o dia e, mãos à obra, logo começaram os preparativos para o “golpe”. Furtados os carros, arranjadas as armas, foi só deitar mãos à obra.
É claro, do plano constava a obrigatoriedade de ficar alguém ao volante, com o motor em marcha, enquanto os restantes faziam a “colheita”.
Apesar de não possuir carta de condução, embora tivesse já uma certa prática, foi ao Ratinho que coube tal tarefa, dado ser o mais inexperiente.
Enquanto executam o “golpe”, o alarme toca e a Polícia chega num ápice. Gera-se tiroteio e o Ratinho é ferido gravemente, seguindo sob prisão para o hospital, onde, apesar dos esforços intensivos de toda a equipa médica de urgência, acabou por falecer.
No dia seguinte, a notícia é publicada em grandes parangonas nos jornais diários. A Dona Sociedade que, embora não dedique muito tempo à leitura, sempre gosta de ler os “casos do dia”, toma conhecimento do facto. Quase se comove com a sorte do “inocentezinho” e comenta com o Polícia, já seu velho conhecido e confidente das suas mágoas:
– Aquele, coitadito, já não incomoda ninguém! O destino encarregou-se de o julgar. Há muitos, por aí, bem piores do que ele, que se fartam de violar crianças, matar pessoas e encharcar a juventude com droga, e nem sempre são apanhados e muito menos algo de mal lhes acontece! Até parece que sinto certos remorsos por o ter mandado prender, coitado! Deus lhe perdoe que, por mim, está perdoado.
– Pois é, Dona Sociedade, da nossa parte, tudo temos feito para preservar a sua liberdade e a sua segurança. Se nem sempre o conseguimos e isto acontece, a culpa não é nossa. É do sistema!
– Do sistema?! Ora essa! Mas o que é lá isso do sistema?
E lá foi, rua fora, intrigadíssima, a imaginar que coisa esquisita  seria essa do “sistema” que fazia com que uma criança andasse todos os dias a ser presa pela prática de crimes diversos, saísse da prisão pior do que para lá entrara, não lhe arranjassem emprego e, ainda por cima, acabar por ser morto num assalto em que, desesperadamente, procurava arrecadar  algo para a sua subsistência e da sua família.
Entretanto, na refrega, os comparsas acabaram por ser detidos e enviados ao Juiz de Instrução Criminal que, por sua vez, os removeu para a cadeia.
Mais uns tempos, quiçá uns anos, num submundo em que os contestatários, que procuram criar para si uma diferente escala de valores à qual, cega e exclusivamente, obedecem, infringindo, assim aquela por que nos regemos e os delinquentes por tendência se amontoam e confundem. Mais uns quantos, certamente, irão ser instruídos noutros tipos de crime, mais ousados, mais sofisticados, em suma, mais horripilantes. Eles que nada aprenderam a fazer de útil, na vida, porque nunca os ensinaram ou lhes deram oportunidade para tal…
Mas se, mesmo assim, reconhecendo o erro em que caíram, estigmatizados pela pena que tiveram de cumprir, pensam reabilitar-se, tentando arranjar trabalho, são, imediatamente, preteridos, em função do seu passado.
O passado, aquele fantasma imortal que permanentemente paira no seu espírito e que lhe é atirado à cara, passo a passo, como autêntico devorador de esperanças e criador de revolta e desespero.
Porquê? Porque quando se criaram as leis que punem os infractores às normas de conduta social, se ignoraram as estruturas adequadas à sua reabilitação, quando se propõem acatá-las e regenerar-se, os deixam abandonados à sua sorte, à mercê das tentações ou dos “salvadores” que, nessas horas, quase sempre aparecem, com propostas supostamente aliciantes, arrastando-os, mais uma vez, na lava dos seus maus génios.
A Dona Sociedade não quis prender o Ratinho, quando lhe assaltou a casa, embora percebesse nele um indivíduo manso e até delicado. Não quis correr o risco, embora tivesse todas as possibilidades e facilidades para tal. Achou melhor chamar o Polícia, pois – entendeu – a ele competia fazer o papel de mau da fita. Mais tarde, sabendo do sucedido, sente até certas culpas por o ter denunciado, mas não as sente por nunca lhe ter oferecido trabalho, lamentando, pesarosamente, a sua morte em tais circunstâncias.
Afinal, o que temos feito?
Apenas isto!
O que deveríamos fazer?
Julgo que muito mais.


Autor:
Miguel Henriques (Rodrigues)


(Cerimónia de entrega dos prémios aos vencedores do concurso literário promovido pela R.I.C)




[1] Trabalho da minha autoria, vencedor do 1.º prémio do concurso literário da Revista de Investigação Criminal e publicado no n.º 12 desta, em Dezembro de 1983, edição do Centro de Cultura e Desporto da Directoria do Porto da Polícia Judiciária.