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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A CULPA É DO SISTEMA


A CULPA É DO SISTEMA[1]

– Socorro! Ó senhor Polícia, acuda-me, por favor! Fui agora mesmo assaltada, ali, na rua. Veja só, o estado em que aquele bandido me deixou!
– De facto, não é nada agradável! Mas conte lá como foi e faremos o possível por apanhá-lo. Vá lá, conte!
– Olhe, era um indivíduo baixo, cabelo desalinhado, de pele escura, aparentando uns dezasseis anos…
– Está bem, está bem. Fico com estes dados e espero poder identifica-lo, o mais rapidamente possível.
Alguns dias passaram, até que, esbaforida, a Dona Sociedade volta ao departamento policial.
– Senhor Polícia, senhor Polícia, isto é de mais! O ladrão daquele indivíduo, de que lhe falei há dias, acaba de me entrar em casa. Surpreendi-o em pleno trabalhinho.
– E então, agarrou-o?
– Quem? Eu? Era o que faltava! Ainda me levava a mim, também!
– Usou de alguma violência para consigo?
– Não, senhor! Até foi simpático! Agradeceu e tudo! Por acaso, até tive sorte! Um colega seu que anda perto ouviu-me gritar «agarra que é ladrão!» e prendeu-o, devolvendo-me todos os meus pertences.
– Até no tipo de ladrão que nos toca é preciso ter-se sorte! – comenta o Polícia num aparte.
– Então, e agora o que é que lhe vão fazer?
– Olhe, minha senhora, vai ser presente ao Juiz de Instrução Criminal, para validar e manter ou não a sua prisão, já que foi apanhado em flagrante delito.
– Oxalá fique preso por uns tempos esse vadiote, para se poder andar à vontade.
No dia seguinte:
– Ouça cá, senhor Polícia: afinal, o gatuno de ontem já hoje se cruzou comigo, ali na rua, e sabe o que me fez? Veja aqui estas manchas no braço! Pelos modos, até parece que estava drogado!
– De facto, o Ratinho é um toxicómano já nosso conhecido.
– É o quê?
– Um toxicómano!
– E o que é isso?
– Não sabe?! É um consumidor de droga, um drogado.
– Hum! Bem me queria parecer!
– Mas diga lá: foi preso?
– Por acaso, foi! Gritei, e um colega seu acorreu em meu socorro, apanhou-o e levou-o. E agora, o que é que lhe vão fazer?
– Vai ser presente ao Juiz de Instrução Criminal, como da outra vez.
– A quem? Ao mesmo que o soltou ontem?
– Poderá ser ou não o mesmo. Isso não interessa.
– Mas para quê?
– Para manter ou não a prisão. Já sabe como é…
– Bom, vamos então a ver se sempre é desta!
Porém, mal chega à rua, depara com o mesmo indivíduo, agora a assaltar um automóvel. Volta junto do Polícia e manifesta-lhe a sua surpresa pelo facto de o ver em liberdade, outra vez.
– Olhe, senhor Polícia, pensando bem, nem sei se vale a pena incomodar-vos. Veja só: o tratante já está ali, outra vez, a assaltar um carro. Não acha que é de mais?!
– Bom, de mais ou de menos, se ainda lá está, há é que o “amarrar”, outra vez.
Corre para o local indicado pela Dona Sociedade e surpreende-o, já a acabar o “servicinho”, com um rádio-leitor e um casaco de couro contendo dinheiro e alguns documentos, acabados de furtar do veículo.
– Com que então, nosso heroizinho, outra vez a pisar o risco!
– Que é que quer que eu faça? O meu pai está separado da minha mãe. Vivo com ela que apenas recebe uma mísera pensão de invalidez que mal dá para pagar a água, a luz e a renda do “barraco”. Ainda por cima, tenho dois irmãos mais novos que eu, a pedir pão!
– Então, e tu não sabes pedir trabalho?
– Pedir sei eu! Só que não sei é trabalhar! Nunca me ensinaram a fazer o que quer que fosse. Ainda há dias me fui oferecer a uma fábrica e sabe o que me disseram?
– …..
– Que fosse bater a outra porta, que empregados já tinham demais; os trabalhadores é que eram poucos e que eu não tinha físico, nem cara de trabalhador!
– Assim, ao alto, é que te não safas. Lá vais ter de ir para o “saco”, outra vez. Nem Deus nem Sant’Antoninho te acode. Vais ver!
Na realidade, assim aconteceu. A prisão foi confirmada e mantida, sendo o Ratinho enviado para a cadeia, onde ficou a aguardar julgamento, sem admissão de caução. De qualquer dos modos, não se iria sentir só, porquanto, nesse mesmo estabelecimento prisional, havia já para cima de meio milhar de presos de ambos os sexos e de diversos escalões etários, rotulados com toda a gama de crimes.
Volvidos que foram alguns meses, já mais “profissionalizado”, através dos conhecimentos adquiridos nos “comícios” improvisados para quebrar a monotonia, naquelas longas horas de lazer, dentro da prisão, o Ratinho é chamado a julgamento, onde teve de se explicar.
Atenta a sua idade, a confissão espontânea, e ponderadas as circunstâncias atenuantes e agravantes, acabou por ser condenado numa pena que ele próprio considerou benévola, saindo em liberdade condicional pelo período que lhe restava cumprir.
Uma vez cá fora, ainda tenta arranjar emprego, mas os potenciais patrões, não descurando  sempre um inqueritozinho ao passado do candidato, acabam, inevitavelmente, por saber das suas prisões, rejeitando-o e aconselhando-o a ir bater a outra porta – e porque não?! – à da esquadra mais próxima.
E, é neste desespero, que o Ratinho se lembra das conversas tidas nas longas horas de ócio, no interior do estabelecimento prisional, com os companheiros de ocasião. Aquelas aventuras, enfaticamente narradas, faziam-lhe ferver o sangue dos seus dezassete anos. A vida na prisão é difícil, ele bem o sentira na pele, mas o seu viver não era vida, especialmente, para um jovem marcado pelo crime que, segundo pensava, era obrigado a cometer. Porque não tentar um assalto a um banco? Já agora, era mais um menos um e podia ser que até nem fosse descoberto. Além disso, se o “bolo” fosse bom, montaria um negócio, enfim, uma coisa qualquer que o não obrigasse a pedir trabalho aos outros e abandonaria, definitivamente, a senda do crime.
De qualquer das maneiras, para a execução de tal plano, era necessário uma arma para si, dois automóveis, pelo menos, e mais uns três comparsas.
Contactou, então, os seus velhos “mestres” da prisão, já em liberdade, em consequência da amnistia entretanto decretada e propõe-lhes o plano que pormenorizadamente lhes expõe.
Acertados alguns pormenores que a experiência dos “mestres” não deixou passar em claro, combinam o dia e, mãos à obra, logo começaram os preparativos para o “golpe”. Furtados os carros, arranjadas as armas, foi só deitar mãos à obra.
É claro, do plano constava a obrigatoriedade de ficar alguém ao volante, com o motor em marcha, enquanto os restantes faziam a “colheita”.
Apesar de não possuir carta de condução, embora tivesse já uma certa prática, foi ao Ratinho que coube tal tarefa, dado ser o mais inexperiente.
Enquanto executam o “golpe”, o alarme toca e a Polícia chega num ápice. Gera-se tiroteio e o Ratinho é ferido gravemente, seguindo sob prisão para o hospital, onde, apesar dos esforços intensivos de toda a equipa médica de urgência, acabou por falecer.
No dia seguinte, a notícia é publicada em grandes parangonas nos jornais diários. A Dona Sociedade que, embora não dedique muito tempo à leitura, sempre gosta de ler os “casos do dia”, toma conhecimento do facto. Quase se comove com a sorte do “inocentezinho” e comenta com o Polícia, já seu velho conhecido e confidente das suas mágoas:
– Aquele, coitadito, já não incomoda ninguém! O destino encarregou-se de o julgar. Há muitos, por aí, bem piores do que ele, que se fartam de violar crianças, matar pessoas e encharcar a juventude com droga, e nem sempre são apanhados e muito menos algo de mal lhes acontece! Até parece que sinto certos remorsos por o ter mandado prender, coitado! Deus lhe perdoe que, por mim, está perdoado.
– Pois é, Dona Sociedade, da nossa parte, tudo temos feito para preservar a sua liberdade e a sua segurança. Se nem sempre o conseguimos e isto acontece, a culpa não é nossa. É do sistema!
– Do sistema?! Ora essa! Mas o que é lá isso do sistema?
E lá foi, rua fora, intrigadíssima, a imaginar que coisa esquisita  seria essa do “sistema” que fazia com que uma criança andasse todos os dias a ser presa pela prática de crimes diversos, saísse da prisão pior do que para lá entrara, não lhe arranjassem emprego e, ainda por cima, acabar por ser morto num assalto em que, desesperadamente, procurava arrecadar  algo para a sua subsistência e da sua família.
Entretanto, na refrega, os comparsas acabaram por ser detidos e enviados ao Juiz de Instrução Criminal que, por sua vez, os removeu para a cadeia.
Mais uns tempos, quiçá uns anos, num submundo em que os contestatários, que procuram criar para si uma diferente escala de valores à qual, cega e exclusivamente, obedecem, infringindo, assim aquela por que nos regemos e os delinquentes por tendência se amontoam e confundem. Mais uns quantos, certamente, irão ser instruídos noutros tipos de crime, mais ousados, mais sofisticados, em suma, mais horripilantes. Eles que nada aprenderam a fazer de útil, na vida, porque nunca os ensinaram ou lhes deram oportunidade para tal…
Mas se, mesmo assim, reconhecendo o erro em que caíram, estigmatizados pela pena que tiveram de cumprir, pensam reabilitar-se, tentando arranjar trabalho, são, imediatamente, preteridos, em função do seu passado.
O passado, aquele fantasma imortal que permanentemente paira no seu espírito e que lhe é atirado à cara, passo a passo, como autêntico devorador de esperanças e criador de revolta e desespero.
Porquê? Porque quando se criaram as leis que punem os infractores às normas de conduta social, se ignoraram as estruturas adequadas à sua reabilitação, quando se propõem acatá-las e regenerar-se, os deixam abandonados à sua sorte, à mercê das tentações ou dos “salvadores” que, nessas horas, quase sempre aparecem, com propostas supostamente aliciantes, arrastando-os, mais uma vez, na lava dos seus maus génios.
A Dona Sociedade não quis prender o Ratinho, quando lhe assaltou a casa, embora percebesse nele um indivíduo manso e até delicado. Não quis correr o risco, embora tivesse todas as possibilidades e facilidades para tal. Achou melhor chamar o Polícia, pois – entendeu – a ele competia fazer o papel de mau da fita. Mais tarde, sabendo do sucedido, sente até certas culpas por o ter denunciado, mas não as sente por nunca lhe ter oferecido trabalho, lamentando, pesarosamente, a sua morte em tais circunstâncias.
Afinal, o que temos feito?
Apenas isto!
O que deveríamos fazer?
Julgo que muito mais.


Autor:
Miguel Henriques (Rodrigues)


(Cerimónia de entrega dos prémios aos vencedores do concurso literário promovido pela R.I.C)




[1] Trabalho da minha autoria, vencedor do 1.º prémio do concurso literário da Revista de Investigação Criminal e publicado no n.º 12 desta, em Dezembro de 1983, edição do Centro de Cultura e Desporto da Directoria do Porto da Polícia Judiciária. 





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