"Domingo, 29 de dezembro (1974).
Parto com cerca de duas dezenas de homens do meu grupo de combate para uma localidade chamada Moxico Velho, uma pequena localidade situada a cerca de 20 km a sul da cidade do Luso, onde, segundo rezam as crónicas, terá sido fundada a primeira sede provincial do Moxico, a fim de montarmos segurança ao brigadeiro Francisco Abreu Riscado, comandante da Zona Militar Leste e Governador Civil do Distrito, que ali vai participar na cerimónia da inauguração de uma igreja católica.
Graduados, integrando o corpo de segurança, apenas o alferes Silva e eu.
Só fui informado da operação na véspera, sem que me tivessem incumbido do que quer que fosse relativamente ao seu planeamento. Confiei que tal tarefa tivesse sido atribuída ao alferes, uma vez que era o comandante da força. Porém, nada! Sem termos tomado o pequeno-almoço, saímos do destacamento pelas seis e meia da manhã, sem que tivesse havido a preocupação por parte de quem quer que fosse de efetuar o reconhecimento ou sequer um estudo prévio do percurso. Tão-pouco se sabia a que distância ficava dali. Levávamos apenas connosco um rapazito de cor negra, indígena, ainda adolescente, a servir-nos de guia.
Tínhamos já penetrado na floresta, alguns quilómetros, através de uma picada, quando o guia, que seguia na viatura da frente, comandada pelo alferes, mostrando-se algo baralhado, lhe confessou não ter a certeza de estarmos no caminho certo. O alferes manda parar a viatura, apeia-se e dirige-se a mim, que comandava a segunda viatura, na sua retaguarda:
— Henriques, estamos tramados! Acho que andamos perdidos. O puto diz que não sabe sequer onde estamos.
— Eu também não! — respondi, secamente, embora respeitando o embaraço e algum nervosismo que a palidez do seu rosto denunciava, demonstrando algum desconforto por não ter sido tido nem achado no planeamento da operação.
— E se o chão está minado? — atirou o Silva.
— Pois! – retorqui eu, franzindo o sobrolho.
— Pois é! Pode ser uma grande chatice! — volveu ele.
— Deixa lá! Se estiver, eu hei de ter tempo de me aperceber! Tu é que vais à frente! — ironizei, no sentido de lhe dar a entender que, na guerra, tudo deve ser estudado e planeado ao pormenor, por mais simples que se nos afigure a operação, coisa que, no caso, não havia acontecido, sem qualquer culpa da minha parte, mas que nem por isso deixava de estar ali a correr os mesmos riscos que ele, bem como todos os homens à nossa, minha e dele, responsabilidade.
— Estás a ser mauzinho, Henriques! — replicou.
— Vá, vamos lá, meu alferes! A guerra já acabou há uns meses e o piso está puído, sinal de que têm por aqui passado viaturas, recentemente! Mas é pena que não tenha sido feito previamente um bom trabalho de casa! Aprendi que, na guerra, os erros são todos fatais.
E vendo que o alferes acusou algum embaraço, não tendo desgrudado o seu olhar do meu, enquanto encolhia os ombros, optei por desdramatizar a situação:
— Bem, não há de ser nada! Agora, precisamos é de descobrir o caminho para o objetivo! Vamos!
Fizemos inversão de marcha, pedimos uma informação a um adulto que encontrámos pelo caminho e lá retificámos o percurso.
Transcorridas cerca de duas penosas dezenas de quilómetros, com a apreensão patente no rosto do alferes, através da tal picada, toda esburacada, lá atingimos o nosso objetivo, um aldeamento aparentemente isolado no mato. Posicionámos o pessoal em torno do perímetro da igreja e aguardámos pela cerimónia que, como é habitual nestas circunstâncias, se foi alongando em sucessivos momentos solenes. À medida que o tempo passava, a fome e a sede apertavam, e nós ali, impávidos e serenos, sob um sol abrasador. Os soldados começavam a ressentir-se disso mesmo, expressando os seus queixumes. O alferes e eu lá conseguimos reunir uns trocados que, por mero acaso, levámos connosco, e com eles comprámos, numa pequena taberna existente no lugar, uns pacotes de bolachas, única coisa que havia, e distribuímo-los pela rapaziada. Comi algumas, o que me agravou ainda mais a sede. Infelizmente, ali por perto, não vislumbrámos nada com que nos pudéssemos dessedentar.
Fosse a fome, a sede, o stress causado pelo improviso da situação, o calor, a altitude do lugar, fosse o que fosse, ou tudo junto, a verdade é que comecei a sentir-me mal. Confidenciei isso mesmo ao alferes que, no momento, conversava comigo, enquanto me aliviava do peso do cinturão com as cartucheiras, dizendo-lhe que a minha visão estava a ficar turva. De repente, segundo ele, caí de bruços, em prancha, inanimado. Acordei, qual pietá, nos seus braços, rodeado de soldados. Espantado com a situação, perguntei o que é que se tinha passado. Senti, então, enquanto falava, terra na boca e uma ardência no lábio superior, que sangrava. O alferes, completamente lívido, a perguntar-me o que é que eu tinha tido… Eu idem… O corpo, de tão dorido, parecia ter acabado de ser atropelado por um comboio. Fui transportado para uma cama de uma habitação do lugar e, aí, fui recuperando, aos poucos, as minhas forças, depois de me terem mitigado a fome com uma fatia de bolo-rei e um sumo de maracujá.
Pelas treze horas, encetámos o regresso ao aquartelamento, onde chegámos uma hora depois. Aqui, embora a disposição e o apetite não fossem lá grande coisa, meti qualquer coisa à boca e parti para a cidade, em visita aos amigos Gomes da Costa, com quem vim a jantar, nessa noite.
Pernoitei no quarto que detinha na messe de sargentos, sita na zona residencial militar, na cidade e, pela manhã seguinte, regressei ao destacamento, onde fui cumprir a rotina.
O primeiro dia do ano da independência daquele novo Estado soberano foi passado com os amigos Gomes da Costa e outros conterrâneos meus residentes na capital do Moxico. De novo, ou de diferente, nada. Um dia, para mim, feliz ou infelizmente, igual em tudo a todos os outros. "
In HENRIQUES Miguel, 2016, "DE LAMEGO AO LUBANGO - memórias dos últimos dias da guerra colonial", Mosaico de Palavras, Porto.