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sexta-feira, 10 de abril de 2015

SERÁ A CORRUPÇÃO UM CULTO?

SERÁ A CORRUPÇÃO UM CULTO?

A corrupção é sem dúvida um dos cancros do Estado de Direito, na medida em que viola desde logo o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, que reza o seguinte:

«Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»

Com efeito, um Estado que não respeita este princípio não é – não pode ser! – seguramente, um Estado de Direito. Tratar os seus cidadãos de modo desigual, quer de forma arbitrária quer discriminatória, seja por que motivo for, atenta contra a Justiça que todos nós pretendemos seja o fim último deste emaranhado de normas que nos regem e que tecem o nosso ordenamento jurídico ao qual todos estamos subordinados, desde a lei fundamental ao mais simples regulamento.

Ora, como sabemos, o poder do Estado exerce-se através de três poderes fundamentais: o Legislativo, o Executivo e o Judicial.

Para o efeito, existem órgãos próprios, a quem compete o exercício desses poderes: a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.

Órgãos esses constituídos por pessoas humanas, os designados funcionários públicos, a quem cabe, cada uma na sua esfera de competência, criar, cumprir e fazer cumprir as normas tidas por necessárias a uma sã convivência societária, ao desenvolvimento social, em suma, à felicidade de cada um de nós em sociedade que é, no fundo, o que todos buscamos nesta mais ou menos breve passagem por este mundo.

É esse poder de cada uma dessas pessoas a quem foi atribuído esse encargo ou função pública que deve ser exercido com plena isenção, tal como lhe é constitucional e legalmente exigido. Não o fazendo, está a subverter a norma e, como tal, a gerar injustiça, enfim, a pôr em crise o Estado de Direito.

E se ao nível das bases da administração pública já se torna doloroso ver que há expedientes nefastos (por exemplo, o funcionário da repartição que, a troco de uma qualquer vantagem patrimonial ou não, ou da simples promessa da mesma, deixa de cumprir os seus deveres, favorecendo o seu “amigo” em detrimento de terceiros), muito mais pernicioso se torna a situação quando tal ocorre no domínio dos seus quadros mais elevados, das próprias cúpulas. Na verdade, por vezes, parece demasiado óbvio que determinados indivíduos ali são colocados não para servirem a comunidade, mas para se servirem do cargo, autênticos oportunistas, tratando da sua vidinha e da do seu círculo de amigos, enquanto é tempo.

Chegámos a um estado tal que a corrupção parece ter-se tornado um culto, fazendo jus àquela velha máxima que diz que “quem tem amigos não morre na cadeia”, ou seja, o conceito de utilidade na base da noção de amigo. Assim, do género: «Tenho lá um amigo na repartição que me safa a coima; que me acelera o processo; que me desenrasca…».

Enfim, o tal amigo que me dá aquele jeito que não aconteceria se o não tivesse, facilitando-me as coisas, independentemente de para isso ter postergado os legítimos interesses de outrem.

E quando digo que parece ter-se tornado um culto não o faço por acaso. Na verdade, se bem repararmos e para quem, como eu, foi educado na religião católica, desde os bancos da catequese que nos habituámos a pedir a alguém para que interceda por nós junto do Pai, do Criador. São inúmeras as orações aos Santos, à Virgem, enfim, para que intercedam por nós. Isto para já não falar naquela troca de favores tão arreigada nos nossos crentes «se a Nossa Senhora me curar da minha doença, prometo-lhe que irei a Fátima a pé; se eu passar naquele exame, rezar-lhe-ei um terço, dando umas voltas à igreja…».

Enfim, somos todos filhos do mesmo Criador que se diz ser omnipotente, omnisciente e omnipresente; que como bom pai que é não discrimina os seus filhos, mas a verdade é que, por vezes, parece distraído e é preciso pedir a alguém da sua confiança e que sobre Ele possa exercer alguma influência, para que se não esqueça de nós, das nossas maleitas, da nossa felicidade e das dos nossos familiares e amigos.

É ou não isto tráfico de influências? E qualquer conduta desta natureza, entre os humanos, é tida como criminosa à luz da nossa lei criminal e, como tal, severamente punida.

Com efeito, aquela cunhazita parece estar sempre presente na nossa cultura religiosa e que depois se extrapola para a vida laica, como se tudo fosse normal, mas, na realidade, não o é, sendo, antes pelo contrário, extremamente pernicioso para o Estado de Direito e, por consequência, para a democracia que todos nós prezamos e almejamos.

Porto, 10-4-2015

Miguel Henriques