SERÁ
A CORRUPÇÃO UM CULTO?
A
corrupção é sem dúvida um dos cancros do Estado de Direito, na medida em que
viola desde logo o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da
Constituição da República Portuguesa, que reza o seguinte:
«Artigo
13.º
(Princípio
da igualdade)
1.
Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2.
Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer
direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça,
língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
Com
efeito, um Estado que não respeita este princípio não é – não pode ser! –
seguramente, um Estado de Direito. Tratar os seus cidadãos de modo desigual,
quer de forma arbitrária quer discriminatória, seja por que motivo for, atenta
contra a Justiça que todos nós pretendemos seja o fim último deste emaranhado
de normas que nos regem e que tecem o nosso ordenamento jurídico ao qual todos
estamos subordinados, desde a lei fundamental ao mais simples regulamento.
Ora,
como sabemos, o poder do Estado exerce-se através de três poderes fundamentais:
o Legislativo, o Executivo e o Judicial.
Para
o efeito, existem órgãos próprios, a quem compete o exercício desses poderes: a
Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.
Órgãos
esses constituídos por pessoas humanas, os designados funcionários públicos, a
quem cabe, cada uma na sua esfera de competência, criar, cumprir e fazer cumprir
as normas tidas por necessárias a uma sã convivência societária, ao
desenvolvimento social, em suma, à felicidade de cada um de nós em sociedade que
é, no fundo, o que todos buscamos nesta mais ou menos breve passagem por este
mundo.
É
esse poder de cada uma dessas pessoas a quem foi atribuído esse encargo ou
função pública que deve ser exercido com plena isenção, tal como lhe é
constitucional e legalmente exigido. Não o fazendo, está a subverter a norma e,
como tal, a gerar injustiça, enfim, a pôr em crise o Estado de Direito.
E
se ao nível das bases da administração pública já se torna doloroso ver que há
expedientes nefastos (por exemplo, o funcionário da repartição que, a troco de
uma qualquer vantagem patrimonial ou não, ou da simples promessa da mesma,
deixa de cumprir os seus deveres, favorecendo o seu “amigo” em detrimento de
terceiros), muito mais pernicioso se torna a situação quando tal ocorre no
domínio dos seus quadros mais elevados, das próprias cúpulas. Na verdade, por
vezes, parece demasiado óbvio que determinados indivíduos ali são colocados não
para servirem a comunidade, mas para se servirem do cargo, autênticos
oportunistas, tratando da sua vidinha e da do seu círculo de amigos, enquanto é
tempo.
Chegámos
a um estado tal que a corrupção parece ter-se tornado um culto, fazendo jus
àquela velha máxima que diz que “quem tem amigos não morre na cadeia”, ou seja,
o conceito de utilidade na base da noção de amigo. Assim, do género: «Tenho lá
um amigo na repartição que me safa a coima; que me acelera o processo; que me
desenrasca…».
Enfim,
o tal amigo que me dá aquele jeito que não aconteceria se o não tivesse,
facilitando-me as coisas, independentemente de para isso ter postergado os
legítimos interesses de outrem.
E
quando digo que parece ter-se tornado um culto não o faço por acaso. Na
verdade, se bem repararmos e para quem, como eu, foi educado na religião
católica, desde os bancos da catequese que nos habituámos a pedir a alguém para
que interceda por nós junto do Pai, do Criador. São inúmeras as orações aos
Santos, à Virgem, enfim, para que intercedam por nós. Isto para já não falar
naquela troca de favores tão arreigada nos nossos crentes «se a Nossa Senhora
me curar da minha doença, prometo-lhe que irei a Fátima a pé; se eu passar
naquele exame, rezar-lhe-ei um terço, dando umas voltas à igreja…».
Enfim,
somos todos filhos do mesmo Criador que se diz ser omnipotente, omnisciente e
omnipresente; que como bom pai que é não discrimina os seus filhos, mas a
verdade é que, por vezes, parece distraído e é preciso pedir a alguém da sua
confiança e que sobre Ele possa exercer alguma influência, para que se não
esqueça de nós, das nossas maleitas, da nossa felicidade e das dos nossos
familiares e amigos.
É
ou não isto tráfico de influências? E qualquer conduta desta natureza, entre os
humanos, é tida como criminosa à luz da nossa lei criminal e, como tal,
severamente punida.
Com
efeito, aquela cunhazita parece estar sempre presente na nossa cultura
religiosa e que depois se extrapola para a vida laica, como se tudo fosse
normal, mas, na realidade, não o é, sendo, antes pelo contrário, extremamente
pernicioso para o Estado de Direito e, por consequência, para a democracia que
todos nós prezamos e almejamos.
Porto,
10-4-2015
Miguel
Henriques
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