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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O PREÇO DA MUDANÇA

O PREÇO DA MUDANÇA(1)

Estava-se no verão. Tempo de férias. A tarde quente, entorpecedora, convidava os poucos funcionários ao serviço a uma apatia sonolenta, fruto também de uma ou mais noites mal dormidas, a que o carácter permanente da profissão inelutavelmente obriga.
No gabinete do chefe da brigada, homem já entradote nos anos, servindo a instituição desde a sua origem, guardando ainda consigo os preconceitos de uma geração ida que se viu historicamente ultrapassada, cujo ritmo evolutivo não acompanhou, acontecera um daqueles «briefings» espontâneos em que tudo se discute e nada se decide, desde o ponto da situação do serviço, ao facto insólito e hilariante que ocorrera algures, concitando a atenção geral, passando pelo desaire da equipa X, no encontro de futebol de véspera cujo árbitro foi o culpado do mau resultado obtido, ou então, o treinador que já deveria ter ido embora, etc..
Na vala comum – era assim que humoristicamente se designava a pequena sala onde uma boa meia-dúzia de pesadas e obsoletas secretárias de madeira se acotovelavam, servindo de mesas de trabalho a outros tantos agentes policiais – separada daquele gabinete por uma porta de vaivém envidraçada, apenas o agente Jano se ocupava, pondo em ordem o serviço que, em catadupas, lhe foi distribuído e, mau grado tamanho esforço, via acumular, impotente para responder às exigências estatísticas que, dada a especificidade do trabalho de investigação, sempre considerou o maior inimigo da qualidade.
O telefone toca. Da portaria, informam que acaba de se apresentar ali um indivíduo de nome Aretino, sendo portador de um aviso de notificação, convocando-o para prestar declarações naquela hora.
Jano manda-o subir, imediatamente.
– Dá-me licença? – pergunta Aretino, após três quase surdas pancadas na porta, com os nós dos dedos.
– Faça o favor de entrar! Sente-se aqui, nesta cadeira! – convida Jano, chegando-lha.
– Sabe porque é que cá foi chamado?
– Penso que sim! – responde, timidamente, Aretino.
– Não matou ninguém? – graceja Jano, procurando desinibir um pouco Aretino, desdramatizando a razão de ali estar.
– Não, senhor Agente. Deve ser por causa de uma «pedrita de chocolate» para fazer um «charrito» que uns agentes me apanharam e que tinha comprado por duzentos escudos ao Ivan, na Praça do Marquês.
– De chocolate ou de haxixe?  – indaga Jano, simulando ignorar o calão.
– Sim, de haxixe; eles é que costumam chamar-lhe chocolate! – precisa Aretino.
– Ora, é isso mesmo! Conte lá, como é que isso se passou?
– Bom, eu tinha acabado de receber das mãos do Ivan o pedacinho, quando, de repente…
Aretino, nos seus imberbes dezasseis anos, relata minuciosamente todo o incidente, denunciando um enorme sentimento de culpa, como quem se penitencia por ter cometido algo de extremamente grave e socialmente repugnante. Andava a estudar, e não queria, de modo algum, ficar marcado pela prática de um acto que, ao que via, era tão banal entre os seus companheiros, que nunca imaginou ter podido vir a causar-lhe tamanhos calafrios e complicações, porventura, estigmas indeléveis para toda a sua vida.
Estava decididamente arrependido e tinha vergonha de encarar os seus familiares, vizinhos e mesmo professores que, provavelmente, até terão lido a notícia nos jornais. E que sorte, mesmo assim, não tivera em não ter ficado preso, tal como acontecera ao Ivan!
A espaços, Jano interrompe-lhe o discurso, apurando pormenores sobre o seu «modus vivendi», as razões que o tentaram e dos fins que o motivaram à compra da «pedrita», a fim de melhor conhecer o seu interlocutor, para uma melhor compreensão e tratamento do caso em presença. Entre essas razões, realça dissensões familiares que pretendia superar, procurando escapar-lhes com recurso à droga inibidora e alienante.
Jano cedo conclui não estar na presença de um qualquer marginal, mas, antes, de um jovem cuja violência de paixões e ânsia de absoluta liberdade conduzem ao inconformismo e à inaceitabilidade de regras, fruto do estado de desenvolvimento psicossomático que atravessa, e que tudo pretende remover a qualquer preço. É o custo do crescimento, do desabrochar para a vida real e adversa de uma personalidade em formação. Contudo, Jano regista o relato, com isenção, sem o manipular, dando por encerrado o acto – entenda-se auto.
Seguidamente, tira a máscara de polícia e põe a de «assistente social». Faz-lhe ver quão ilusória e arriscada é a sua perspectiva; quão nocivo o «remédio» que buscou para a solução dos seus problemas. Aos que já tinha iria acrescentar um não menos grave: a toxicodependência! Alerta-o, por isso mesmo, para a degradação da pessoa humana, em toda a sua dimensão, moral, racional e física, a que o consumo de droga inexoravelmente conduz e a que acresce a circunstância de vir a ficar socialmente rotulado de criminoso, já que como crime a lei considera tal facto, sofrendo, a partir daí, todo o género de discriminação, com gravíssimas repercussões na consecução dum emprego, para assegurar a sua sobrevivência como ser autónomo. Se a sanção penal é limitada no tempo, muito mais duradoura é a sua lembrança na memória das pessoas.
Nos olhitos brilhantes de Aretino, adivinhava-se a alegria de quem descobre um tesouro e promete a si mesmo que tal facto se não repetirá.
No corredor, a mãe, que o acompanhara, aguarda a sua saída da sala, para falar com o agente.
Aretino despede-se e a porta abre-se para sair.
A mãe pede para falar com Jano.
– Era só uma troca de impressões, senhor Agente, se faz favor! – promete.
Jano anui e convida-a a entrar, enquanto Aretino a aguarda, no corredor.
Começa, então, o desfiar de todo um rosário de angústias e vergonhas pelo facto de uma família tão séria e honesta ver um seu membro envolvido em assuntos do foro policial. E o seu filho? Seria um caso perdido? É que, desde que os factos ocorreram, como que emudeceu, enclausurando-se no seu quarto, donde apenas e a custo sai para comer e ir às aulas.
– A família está toda apavorada! E ele até tem sido tão bom aluno! – esclarece, lamentando-se, a mãe.
– Não há razão para isso. Ele vai portar-se bem e recuperar o seu modo de ser normal! – tranquiliza o agente.
De repente:
– Jano!
– Sim, chefe, faça favor! – levanta-se e vai ao gabinete onde decorre o «briefing».
– O que é que essa senhora está aí a fazer?
– Estive a ouvir o filho e, agora, estou a trocar umas impressões com ela, a seu pedido, sobre o comportamento dele.
– Veja se a manda embora!
– Está bem, chefe.
Mas, subitamente, Jano adivinha algo naquela ordem delicadamente indelicada e inoportuna, para além do sentido aparente e ingénuo da expressão. Volta atrás e pergunta:
 Estou a ser preciso, chefe?
– Não.
Jano abrevia a entrevista e despede-se daquela mulher de ar abatido que acabava de mendigar ao agente um pouco de paz para a sua alma, confidenciando coisas que a mais ninguém teve coragem de desabafar, levando nos lábios um sorriso, como quem acaba de ver regressar o filho pródigo.
Na mente de Jano, martelam, contundentes, aquelas palavras áridas, lancinantes:
«Veja se a manda embora!»
Que terá pretendido o chefe dizer, se, afinal, não era uma questão de tempo e ele não estava, sequer, a ser necessário? Seria por ser uma mulher e receasse que o tema da conversa nada tivesse a ver com serviço? Ou seria pelo papel de amigo, conselheiro humano, que estava a fazer, quiçá usurpando o lugar do assistente social? Será isso incompatível com a função do polícia? Ou será, também, no momento próprio, função do polícia!
Quanto à primeira hipótese, estaria por certo posta de parte, pois, como chefe que era, deveria conhecer minimamente o seu subordinado, para saber que não era pessoa capaz de se ocupar desses assuntos, durante o serviço, e muito menos com uma mulher que tinha idade para ser sua mãe. Já quanto à segunda, haveria, certamente, razões para isso, no seu entender.
É que Jano, para além do aspecto repressivo da função policial, procura apostar na prevenção, intervindo sempre que as oportunidades se lhe oferecem ou a isso é solicitado. Acredita que um perfeito conhecimento da situação é meio caminho andado, ou mais do que isso, para a sua prevenção, tal como o médico só poderá atacar o mal, se o diagnóstico for correcto. Tudo isto, é óbvio, leva tempo e exige atenção. Sempre que nota alguma receptividade por parte do infractor, não deixa de o alertar para os perigos que corre de uma eventual reincidência e, sobretudo, para a ruína física, porventura e quantas vezes, o risco da própria vida, dos menos avisados. E tantos são os que têm sucumbido à dose excessiva, à embolia cerebral, enfim, talvez por não terem encontrado alguém que, no momento oportuno, lhes desmistificasse aquele paliativo tentador, mas, fatal. E crê que não terão sido ridículos, ingenuamente ridículos, os seus conselhos e advertências, se, ao fim da sua carreira profissional, pelo menos um ser humano lhe tenha prestado atenção e retrocedido na sua senda para a morte prematura, recuperando-se para a convivência sadia, em sociedade.
Será Jano, que assim pensa e age, um intruso na instituição policial que serve? Será um não-polícia, um usurpador do lugar de terapeuta, do psicanalista, do psiquiatra ou do assistente social?
Ele sabe, por experiência, apesar da sua ainda não muito longa carreira profissional, que, frequentemente, a primeira porta a que se bate é à do agente da autoridade, habituado que está a lidar com essas coisas. Por isso mesmo, ele deverá ser, também, o confidente, o amigo e conselheiro experiente, capaz de apontar vias para a solução dos problemas, apto a dirigir palavras de estímulo e de esperança, enfim, pronto a dar um pouco da atenção que todo o ser humano reclama e merece.
Porque assim pensa, nunca deu por perdido esse tempo, rejeitando demitir-se de tal tarefa, recusando-se a continuar a imagem drástica e exclusivamente repressiva do agente policial sisudo, mauzão, medindo todos os infractores pela mesma bitola, utilizando como referência ou medida-padrão o já velho e recalcitrante cadastrado.
Sempre que do outro lado da sua secretária se senta um homem, ouve-o como tal, assumindo o papel de agente da autoridade – e não autoritarista –, que em sua mente concebeu como o melhor.
Refuta a imagem do polícia-puro-instrumento-de-repressão, grosseirão, implacável, indiferente aos problemas humanos; aquele com que sempre se assustaram as criancinhas, quando não comiam a sopa ou se portavam mal. Esse cedeu o lugar ao cívico, àquele que está ao lado dos bons, sempre que a sua ajuda é reclamada, nos momentos de crise, na sua luta contra os maus, os violadores da esfera jurídica alheia.
O seu grande lema é: «vale mais prevenir que remediar!». E essa prevenção, em seu entender, deverá começar pelos bancos da escola, evitando-se prejudiciais aventuras, riscos desnecessários, destruindo-se falsos mitos. Impõe-se uma acção pedagógica, junto dos incautos, que não cabe especialmente ao agente da autoridade, é certo, ajudando-os, se possível, na resolução dos seus conflitos, sensibilizando-os para o problema avassalador em que se tem vindo a tornar, por exemplo, o abuso da droga, qual surto epidémico que a todos compete ajudar a debelar, torná-los participantes activos na tarefa da defesa da liberdade e segurança, bem como da preservação dos valores sociais, o que cabe, genericamente, a cada um, e à Polícia, Tribunais e outros entes públicos em particular.
Esta tarefa via-a ele na penumbra, quando concebeu o seu próprio modelo de agente da autoridade, redescobrindo-a, assumindo as suas próprias exigências, tornando-se indiferente a todos os velhos sofismas.
Quando tal se tiver conseguido, criando-se uma imagem generalizada do agente da autoridade como um amigo, um verdadeiro garante da liberdade e da segurança individual e colectiva, talvez, nessa altura, ele venha a ser mais acarinhado e menos visto como o carrasco, o «mau da fita», de quem as criancinhas sempre fugiram.
Hoje, Jano está absolutamente convicto, quiçá orgulhoso, por ter sido mais um tijolo na edificação de uma Polícia moderna e de face humanista, nunca perdendo de vista a ideia de que, por detrás do criminoso, lá bem no âmago, há sempre um ser humano passível de recuperação.

Autor:
Miguel Henriques (Rodrigues)




[1] Publicado no n.º 22, da Revista de Investigação Criminal, Março de 1987, edição do Centro de Cultura e Desporto da Directoria do Porto da Polícia Judiciária. Baseado em factos reais.


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