MARIA… simplesmente!
Ar assustado, um tanto combalido, sondou com o olhar os circunstantes, à medida que avançava timidamente o passo, acabando por dirigir-se àquele que primeiro lhe surgiu pela frente com uma chapa pendurada na lapela e que lhe pareceu ter dado pela sua presença.
– Provavelmente, será alguém que está aqui para atender o público! – comentou com os seus botões.
O que significava aquele penduricalho na lapela ela não o podia saber, pois, infelizmente, saber ler era um luxo dos mais novos e de alguns privilegiados, mais antigos, que nunca fora permitido às suas quase cinco dúzias de anos.
– Quase cinco dúzias, senhor, olhe que é quanto já conta esta miséria que aqui tem à sua frente! – veio a esclarecer, momentos depois, ao agente, já no decurso da sua pungente narrativa.
Seria ali, naquele cubículo fumegante, empestado de nicotina, a tresandar a fuligem encardida, com uma secretária alagada em telefones e papéis avulsos, rodeada de aperaltados cavalheiros, todos enfatuados e fingindo-se de bem dispostos, que funcionava o tal serviço de piquete para onde a havia mandado o funcionário que a havia recebido à entrada?
– Faça favor, minha senhora! – acode, solícito, um dos agentes, o tal da chapinha ao peito, a quem, felizmente, a disposição para o trabalho e o cumprimento do dever não haviam turvado ainda a visão nem entorpecido a disponibilidade e a sensatez.
– Eu queria apresentar uma queixa, meu senhor, desculpe, mas eu não sei como é que o hei-de tratar!
– Por agente, minha senhora, trate-me por agente, que é a minha categoria, aqui dentro, e daí a razão pela qual aqui estou. É verdade, estou aqui, exactamente, para a atender, tal como a todas as pessoas que cá vierem. Vá, vamos lá, faça o favor de dizer, pretende então apresentar uma queixa, é?
– É, sim, senhor Agente, é isso mesmo, só que, desculpe, mas eu nem sei como é que hei-de começar!
– Não há problema, a gente ajuda no que for necessário. Ora, então, faça favor, tenha a bondade de me acompanhar. Vamos antes aqui para esta salinha, que é para podermos conversar mais à vontade – convidou, na mesma solicitude, o investigador, homem quarentão, temperado nas agruras da vida e habituado a escarafunchar no entulho social, enquanto a ia conduzindo para a comummente designada “sala das queixas”.
– Ora vamos lá, faça o favor de me dizer, então, qual o motivo da sua queixa! – perguntou o investigador, enquanto ia puxando de uma cadeira e a ajeitava para que a senhora se sentasse.
E a senhora, de ar desconfiado, após ter agradecido a delicadeza, inspeccionou, num relance, todo o espaço circundante, interrompendo momentaneamente o discurso para perscrutar o outro lado do biombo, não fosse alguém ouvir aquele chorrilho de poucas-vergonhas que tinha para contar. É que, falar mal de um filho, é consabidamente uma espécie de faca de dois gumes, tanto pode envergonhá-lo a ele, como àqueles que tiveram a responsabilidade de o criar e educar.
– Olhe, senhor Agente, eu sou viúva há vinte anos. O meu marido, que Deus lá tenha em descanso, morreu em Espanha, num acidente, coitadinho! Sabe, era camionista! Deixou-me sozinha, sem emprego e com dois filhos pequenos, ainda crianças, para criar, a viver de uma pensão de miséria, mil e tal escudos, está a ver, senhor Agente, mil e tal escudos… Bom, mas também é verdade que isso já foi há vinte anos! Sabe, é que eu já tenho quase cinco dúzias deles, quase cinco dúzias, senhor, é quanto já dura esta miséria que tem aqui à sua frente. Olhe que, como o senhor pode ver, eu já estou em metade daquilo que era, não em altura, porque, aí, eu sempre fui assim uma atarracadinha, mas, em largura, eu já fui bastante forte, senhor, olhe que já cheguei a pesar sessenta e tal quilos, ah! Hoje, coitada de mim, não passo dos 40, se é que lá chego. Como vê, estou quase só pele e osso, um farrapo humano e, ainda por cima, doente e sem poder trabalhar.
E o agente lá foi ouvindo, atentamente, o profuso desfiar de todo um rosário de lamentações e angústias, jorrado em catadupa da boca daquele frágil ser humano, de ar enfezado, esquelético, pele encarquilhada, olhitos escondidos, refluindo um brilho baço da profundeza das órbitas, por detrás das pálpebras ressequidas, em seu pouco mais de metrito e meio de altura.
– Então, e depois? Vá, conte lá! É que, afinal, ainda não me disse exactamente porque é que cá veio?!
– Olhe, senhor Agente, desculpe o tempo que lhe estou a tomar, mas eu tenho de lhe contar toda a história, para ver se me compreende e me pode ajudar.
– Com certeza, dona… desculpe, creio que ainda me não disse qual é a sua graça?!
– Maria, senhor. Chamo-me Maria.
– Só Maria?! – indagou o agente, lançando um olhar sub-reptício ao papelinho que o segurança lhe havia dado à entrada, apercebendo-se de que do nome constava algo mais.
– Só Maria! Maria… simplesmente, até faz lembrar aquele folhetim que antigamente passava na rádio, lembra-se? Se calhar, não, o senhor ainda é muito novo! – insistiu.
– É claro que lembro, mas… simplesmente, porquê?
– Simplesmente, porque… é que, sabe, afinal, o meu nome completo até é Maria Jorge, mas como Jorge é nome de homem, eu costumo dizer que sou Maria… simplesmente.
– Bom, mas, Marias com nome de homem, há, como sabe, tantas: Maria João, Maria José, Maria Manuel…
– Pois há, lá isso é verdade, mas eu cá é que não gosto nada de ser Jorge!
– Mas olhe que, cá para mim, Jorge até é um nome bonito, mas, pronto, tem todo o direito de não gostar, os gostos não se discutem, não é assim? Vá lá, então, dona Maria, conte lá o que é que a trouxe por cá.
– Olhe, senhor Agente, uma rapariga nova, acabadinha de entrar nos quarenta, livre, mas com dois filhos para criar… enfim, sabe como são estas coisas! Apareceu-me um homem de quem eu gostei, e que gostou de mim, também, e, olhe, resolvemos juntar os trapinhos, como se costuma dizer. Juntámo-nos e passámos a viver em minha casa, pobrezinha, é certo, mas era – era e é! – a minha casa, e só nos não casámos por causa de eu não perder a reformazinha do meu falecido, era pequena mas sempre era alguma coisa e onde ela tapava... E, então, olhe, tivemos uma filha, uma menina muito linda que anda já nos 18 aninhos, coitadinha, começou este mês a trabalhar como ajudante de cabeleireira, a ganhar trinta e tal continhos por mês, está toda contente, é pouco, mas, coitadinha, vai ser o seu primeiro ordenadinho! E sabe, senhor Agente, é como se costuma dizer: buraco que aquele tapar… Não vai ser preciso outro, não é verdade?
– Isso é só no início, dona Maria, com a prática, há-de vir a ganhar mais, com certeza, vai ver!
– Pois é, senhor Agente, mas eu é que estou cheínha, cheínha de medo, sabe?!
– Medo de quê, dona Maria?
– Daqueles malandros dos outros meus dois filhos, são muito ruins, sabe?!
– Ah, sim, degeneraram, às vezes, acontece. Que idade é que eles têm?
– O mais novo tem 26, e o mais velho já anda creio que nos 33, mas são uns vagabundos! O mais novo ainda vá que não vá, que, quando me vê aflita, ainda é capaz de ter pena de mim e de dar uma mãozita, a ajudar, agora o outro… Aquilo é mas é o diabo em pessoa que entrou lá em casa, meteu-se na droga, e olhe, não só não faz nada, como, ainda por cima, me rouba tudo, aquele desalmado! Rouba-me tudo, tudo! Depois, e como se isso lhe não bastasse, ainda me insulta de tudo e mais alguma coisa. Aquilo é do piorio, de curta pra cima, curta pra baixo, e constantemente a ameaçar-me de que, se lhe não der dinheiro, um dia destes ainda me há-de matar. Alega que, como sou mãe dele e já que o trouxe ao mundo, eu é que tenho a obrigação de o sustentar, portanto… E olhe, senhor Agente, se alguma coisinha vou arranjando para comer é porque, graças a Deus, ainda vai havendo gente boa, pessoas amigas que me têm ajudado com uma ou outra esmolinha, é que eu não posso trabalhar. Com licença, está a ver aqui esta costura? – e, desabotoando a blusa, exibiu um segmento da cicatriz que lhe atravessava o esterno, de alto a baixo. – Fui operada ao coração, há pouco mais de um ano, olhe que até me chegaram a tirar veias das pernas para meter aqui, no meu pobre coraçãozinho. Se não fosse operada, já aqui não estava a esta hora, não sei se está a ver?! Mas olhe, afinal, e vendo bem as coisas, nem sei o que é que teria sido melhor! Eu já estava desenganadinha dos médicos, não me davam mais de três meses de vida, andava sempre a desmaiar, a desmaiar, tinha as minhas veias atrofiadinhas, tão apertadinhas, segundo eles diziam, que o sangue já mal podia circular!
– Pronto, mas, felizmente, agora, já não tem esse problema, pois não?!
– Graças a Deus, senhor Agente, graças a Deus, já que a gente tem de estar viva e tem… Só que eu não posso é trabalhar, ando pela Conferência([1]). Mas… tenho vergonha, muita vergonha, senhor, olhe que passam-se dias e dias em que não sei o que é levar uma migalhinha à boca, e aquele malandro a roubar-me, a insultar-me e a ameaçar-me, todo o santo dia! Olhe que, num destes dias, se eu me não tivesse precavido, dando um salto para trás, tinha-me partido ambas as pernas com um pau que me atirou, aquele malandro!
– Se assim é, tem em casa uma rica prenda, lá isso tem, sem dúvida!
– Mas oiça, senhor Agente, há dias – Deus Nosso Senhor me perdoe –, mas olhe que ainda cheguei a pensar que ele se tinha matado!
– Como assim?
– Olhe, abri a porta do quarto e encontrei-o sobre a cama, muito quietinho, virado para o ar, em tronco nu, com uma seringa e a agulha espetada na barriga. Ainda pensei cá para comigo: ó meu Deus, será que foi desta vez que ele me deixou em paz? Vai ser um descanso! Desculpe falar assim, não sei se tem filhos, mas olhe que foi mesmo o que eu pensei! Fiquei cheínha de medo e fechei a porta, mas, pouco tempo depois, já aquele malvado lá andava outra vez a cirandar no quarto. E eu que tantos sacrifícios passei para o criar… Agora, o meu maior medo é que eles façam mal à menina, à meia-irmã, olhe que, cá para mim, são muito capazes, até, de abusar dela, aqueles bandidos. E agora se lhes cheirar a dinheiro fresco… Não sei não como é que vai ser, não…
– E o que é feito do tal senhor com quem a senhora disse que vivia, o pai da rapariga?
– Esse, coitado, cansou-se de aturar as patifarias dos meus filhos e foi para casa dos pais dele. Agora, veja o senhor, sem o meu homem, sem poder trabalhar, sem rendimentos, com aqueles malandros a roubarem-me tudo, o que é que há-de ser de mim? Olhe que a minha fraqueza é tão grande que estou a olhar para si e até parece que estou a ver duas pessoas à minha frente! – e fez uma pausa, olhar embaciado e prostrado no chão, quiçá rebuscando mentalmente as algibeiras, o estômago a dar horas, envergonhada por ter deixado escapar aquele lamento – Ainda se ao menos eu tivesse um pãozinho, mesmo que fosse sequinho, para comer…
Condoído, o agente não se conteve, puxou da carteira, sacou uma nota de quinhentos mil réis e meteu-lha na mão.
– Tome lá que é para comer uma sanduíche, antes de chegar a casa.
– Obrigada, muito obrigada, senhor Agente, mas não, não quero. Não, não posso, eu acho que não devo aceitar.
– Mas acha que não deve aceitar, porquê? Vá, faça o favor, deixe-se disso, é pouco, mas olhe que é de boa vontade!
– Muitíssimo obrigada, o senhor escusava de se estar a incomodar comigo, Deus lhe dê muita saúde e à sua família, senhor Agente.
– E a si também, dona Maria, muito obrigado.
– Olhe que, às vezes, nem sei o que é que me apetece fazer, senhor! Passa-me cá cada coisa pela cabeça…
– Vá lá, vá lá, dona Maria, tenha calma, muita calma! Eles não merecem esse sacrifício. Vai ver que melhores dias hão-de vir, se Deus quiser!
– Não sei, não sei, senhor Agente, o que ainda me pode vir a acontecer!
Daqueles olhos ressequidos pareceu ressumar um arremedo de lágrimas carminadas, mas a verdade é que um corpo tão estiolado pelos malefícios da vida não podia dar-se ao luxo de esbanjar fluidos.
E lá se foi a dona Maria Jorge, aliás, Maria… simplesmente, muito provavelmente, calcorreando a pé os quilómetros que a separavam de Gondomar, donde disse ter vindo pelo mesmo meio. Mulher que, por ironia, tinha no nome um nome de homem. Homem que por razões estranhas à sua vontade, dela, a deixou só, para ir viver com os pais, numa atitude, quiçá egoísta, mas que ela sempre procurou compreender. Talvez por isso, sem que se desse conta, se recusava a admitir o apelido Jorge, nome de homem, no seu próprio nome, porque, afinal, os homens da sua vida, o que é que haviam significado? Abandono, sacrifício, violência…
O agente lá rematou como pôde a situação. Visivelmente emocionado, dirigiu-se para o tal cubículo, onde se encontrava o chefe e outros colegas baforando fumo no rescaldo de mais uma jornada de futebol a alimentar o ócio.
– Chefe, mais casos destes, hoje, e bem fico depenado!
– Então? O que é que se passou?
Posto ao corrente da situação, o chefe limitou-se a lavar as mãos, num eloquente encolher de ombros. Porém, um colega menos comedido, de lá do alto da sua presunção, não contém o sarcasmo e, por entre duas sobranceiras baforadas, proclama:
– Já estou a ver, pá, foste comido de cebolada! Cá para mim, caíste que nem um patinho!
– Não, meu caro colega, com todo o respeito devido à tua perspicácia, que alguma há-de ser, de outro modo, muito provavelmente, não estarias aqui, reconheço que posso ser ingénuo, o que não quer dizer que o tenha sido neste caso, mas julgo não ser assim tão lorpa, como parece quereres fazer crer. Ah! E já agora outra coisa: acima de tudo, sou humano; ou então, se porventura te der mais gozo, ingenuamente humano!
– Hum, hum! – resmungou entredentes o outro.
Porto, Maio de 1993
(Baseado em factos reais)
O autor:
Miguel Henriques
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