Miguel Henriques, o Autor que ora tenho o privilégio de vos
apresentar, não se pode considerar um estreante nas andanças da arte literária.
Mas, já lá vamos.
Miguel Henriques nasceu quando se festejava o solstício de
Inverno do ano de 1953. Nesse dia, a freguesia de Pinho, do concelho de S.
Pedro do Sul, aumentava a sua densidade populacional com mais um rebento; e a
Literatura, ainda sem o saber, acabava de fazer um investimento. Investimento
esse que, ao fim de uns anos, acabaria por dar os seus frutos e acabaria por
resultar numa Literatura ainda mais rica.
Até aos seus vinte anos, Miguel Henriques foi-se mantendo
pelo torrão natal. Em Janeiro de 1974, quando o “25 de Abril” já despontava no
horizonte, a Pátria chamou-o a empunhar armas. Munido da respectiva e
indispensável guia de marcha, apresentou-se no Regimento de Infantaria 5, nas
Caldas da Rainha. Ali aprendeu como se comportar nas fileiras militares, com
tudo o que essa aprendizagem implicava, na altura, bem como ficou a saber que,
mais dia menos dia, teria de se desunhar numa das então chamadas “províncias
ultramarinas”, também conhecidas por “Portugal de além-mar” que, isto numa
altura em que “além-mar” ainda se escrevia com hífen. Actualmente, não se
escreve. Nem com hífen, nem sem hífen. Não se escreve, ponto final.
Adiante.
Concluída a recruta, ou seja, o equivalente ao ensino
básico, poder-se-ia presumir que o mancebo transitasse para o correspondente ao
ensino secundário. Mas não: saltou logo para um curso superior, ou seja, Centro
de Instrução de Operações Especiais. E se não sabem o que é que isto significa,
sigam o meu conselho: não queiram saber, principalmente se forem facilmente
impressionáveis. Se já sabem, não é preciso explicar mais nada.
Miguel Henriques estava, ainda, naquela idade em que a
personalidade está em formação. Aliás, deixem-me que diga que a personalidade
não se forma em determinada idade, ou estádio da vida, ela está a ser continuamente
formada, desde o momento do nascimento até ao último suspiro. O que pode haver
é momentos ou situações que, de algum modo, ou de vários modos, contribuem para
moldar ou acentuar ou esbater certas facetas dessa formação. Por exemplo,
muitos ateus tiveram aulas de catequese e fizeram a comunhão, muitos pacifistas
foram militares. Muitos remediados tornaram-se ricos e ainda hoje não sabem –
perdão: não conseguem – explicar como isso aconteceu. Aliás, o exemplo mais
acabado da formação contínua das personalidades aconteceu com o 25 de Abril,
que permitiu concluir que, afinal, Portugal albergava dez milhões de democratas
que detestavam Salazar.
Teias que a formação da personalidade tece…
Pois bem, após ter sido submetido ao curso de operações
especiais que, aliás, concluiu com aproveitamento, facilmente se suporia que
Miguel Henriques se transformaria numa personagem endurecida pelas agruras da
vida militar, que não se ficou pelo que atrás se descreve; com efeito, o então
jovem mancebo – e isto não é um pleonasmo, já que Miguel Henriques continua a
ser um mancebo, embora mais entradote na idade – dizia eu que o então jovem
mancebo ainda foi cumprir uma comissão de serviço a terras de África, mais
exactamente Angola.
Não, não foi o que aconteceu. Miguel Henriques não se
transformou na tal personalidade endurecida. A testemunhar esta minha
afirmação, está o conteúdo da obra que agora é dada à estampa.
Mas prossigamos.
Depois de se ter visto livre da farda, da G3, do Alferes e
do resto da hierarquia – não por esta ordem, necessariamente – isto é, depois
de finda a comissão de serviço em Angola, Miguel Henriques passou à peluda e ingressou na Polícia
Judiciária. Ali se manteve durante trinta anos, até à aposentação.
Miguel Henriques não é um neófito, nas artes literárias. Foi
colaborador do trimensário “Tribuna da Lafões”, e deu sobejas provas da sua
arte em escritos deliciosos com que ornamentava a extinta “Revista de
Investigação Criminal”, de tão boa memória, editada pela então Directoria do
Porto da Polícia Judiciária. Mas não se ficou por aqui: também são da sua
autoria o conto Aterrorizado, e os
poemas Aos Polícias, Ansiedade e Os Meus Sonhos, que fazem parte de uma obra editada pela Polícia
Judiciária. Essa obra, denominada Um
Outro Olhar, foi o primeiro volume de uma Antologia literária. Primeiro e
último, manda a verdade que se diga, e que incluía trabalhos de vários
funcionários da corporação.
Eu não queria falar da obra, porque não me sinto com tal
direito. É ao Autor que compete tal desígnio, e o meu privilégio consiste em apresentar
o Autor, e não a obra. Mas não é fácil falar de um sem falar da outra. O Autor
e a obra estão tão intimamente ligados, que a dissociação é praticamente
impossível. Uma vez, alguém disse que escrever um livro é como ter um filho, e
nessa altura eu sorri ironicamente; já era pai, mas não tinha escrito nenhum
livro – o que justificava esse sorriso irónico. Hoje, sei que é verdade. Um
livro, tal como um filho, transporta muito da personalidade do seu autor, as
suas angústias, as suas alegrias, os seus medos, enfim, a sua existência.
O seu ADN.
A obra que vos vai ser apresentada, não se limita a ser um
romance. Aliás, se se limitasse, cumpria perfeitamente a sua missão. Mas este
livro consegue ir mais longe: este livro é um poema! Um poema à vida, um poema
ao amor. O autor não conseguiu – provavelmente nem tentou e eu,
particularmente, entendo que teria errado, se tentasse – o autor não conseguiu,
dizia eu, desligar a sua veia poética do romance da vida. Porque este é um romance
de vida. E a vida também é poesia – apesar de tudo. Depois, Miguel Henriques
domina uma arte que não é fácil, e eu sei do que falo: ele não se limita a
descrever as personagens, o leitor é forçado
a encarnar a personagem, o leitor transforma-se na personagem. Miguel Henriques
não se limita a descrever os locais, ele consegue transportar o leitor até aos
locais, o leitor está lá dentro. O leitor não está sentado no sofá a ler o
romance, o leitor está dentro do
romance.
Uma badalada
estridentemente desferida na cupidez patronal pela brônzea imparcialidade do
aristocrático carrilhão dos Clérigos…
Assim começa o livro. E isto é poesia! E a poesia não tem,
obrigatoriamente, que ter rima e métrica. A poesia não tem de ser,
necessariamente, o mavioso chilrear de um pássaro, ou o desabrochar de uma rosa,
ou a neve que caía do azul cinzento do
céu, branca e leve, branca e fria. A poesia também pode estar numa badalada estridentemente desferida. O
que é preciso é ter sensibilidade para encontrar a poesia. E sensibilidade é
coisa que não falta ao Miguel Henriques, e este livro é disso precioso
testemunho.
Fernando Pessoa disse – e deixou escrito – que
O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a sentir que é dor
A dor que deveras sente.
Ou seja: o Poeta é um sofredor. E como não podia deixar de
ser, neste livro também há sofrimento. Pois não disse eu, que este livro é um
romance de vida? E que a vida é poesia? E que poesia é, também, sofrimento?
Mais adiante, encontramos este pedaço de dor: Madrasta é a sorte para aqueles (…) que se
viram forçados a sobreviver à custa do leite escasso e quantas das vezes
amargo, prodigalizado a conta-gotas, quando não supletivamente mendigado a um
ou outro seio generoso da vizinhança, em fase de desmame…
Isto é dor. A dor que deveras se sente.
Desejo-vos uma boa leitura. Porque agradável, ela será.
Garantidamente.
Obrigado pela vossa atenção.
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