Com os meus votos de Boas Festas!
VIAGEM AOS FINAIS DOS ANOS 60 DO SÉCULO PASSADO
A PÁSCOA DA MINHA INFÂNCIA BEIRÃ (Pinho, São Pedro do Sul, Viseu)
A Semana Santa, assim mesmo, com maiúsculas, era, na minha infância, anos sessenta do século passado – convenhamos que já lá vão uns anitos! – uma semana de verdadeiro luto.
Na verdade, o catolicismo, embora o Estado fosse oficialmente laico, marcava profundamente toda a quaresma, ou não começasse ela logo com aquela pungente, realista, mas pouco simpática, advertência da Quarta Feira de Cinzas: “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar!”, no ato da imposição das cinzas na testa de cada cristão. A igreja e seus ministros vestiam-se quase sempre de púrpura, a cor da dor, da paixão. Porém, era especialmente na Semana Santa que o recolhimento, a tristeza, a angústia, a roçar a morbidez, perdoem-me a expressão, colhia o seu máximo significado. Isto no país rural, pelo menos, que era aquele em que então me situava. Ele eram os jejuns e as abstinências das sextas-feiras; era o ritual da Via-Sacra, onde a paixão e morte de Cristo, por vezes, dramatizadas, era repetido vezes sem conta; era a confissão e respetiva comunhão obrigatória, conforme preceituava a Santa Madre Igreja…
Depois, eis que chegava o Domingo de Ramos, um momento divertido para a ganapada que se entretinha cada um a desafiar o outro, numa espécie de bullying, dir-se-ia, nos dias de hoje, a ver qual deles levava o ramo de loureiro ou de alecrim — noutras paragens prevalecia o de oliveira — mais robusto ou mais enfeitado com uns quantos papos-secos, um pacotinho de meia dúzia de bolachas maria, um ou outro rebuçado e, eventualmente, uma laranjita, tudo pendente das suas ramificações. Tão divertido que a verdadeira “floresta”, por sinal, bem aromática e enfeitada, em que o espaço da igreja se transformava, com o seu farfalhar, mal deixava ouvir o sacerdote, muito menos vê-lo. Mas era assim que, simbolicamente, se celebrava a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, sob um coro de hossanas e ramos de palma e oliveira flutuando no ar, onde iria passar-se dos carretos e expulsar os vendilhões do templo.
Passadas essas pontuais emoções, guardava-se o loureiro bento junto à chaminé da lareira, para a eventualidade de ter de defumar a casa, em dias de trovoada, a fim de afastar os raios, e dava-se, então, início à Semana Santa, a última da quarentena ou Quaresma. As festas e romarias literalmente banidas durante os quarenta dias quase geravam, especialmente na juventude, um verdadeiro estado depressivo. Chegada a Quinta Feira Santa, as emissões de rádio quase se silenciavam. Suspendiam a emissão de música ligeira, por exemplo, passando a difundir quase exclusivamente noticiários e música de câmara. A igreja passava a ser o destino diário de católico que se prezasse, onde a liturgia invariavelmente versava sobre os últimos passos e padecimentos até à morte e crucificação de “Jesus Cristo feito Homem, à nossa imagem e semelhança, para nos redimir dos nossos pecados”. E assim se mantinham até às zero horas do Domingo de Páscoa, o domingo seguinte, momento que punha termo ao velório e em que o mundo cristão exultava de alegria, com foguetório e tudo, pela ressurreição do Filho do Homem, mas em que, paradoxalmente, só a mãe é conhecida.
Bom, mas o que me levou a escrever este arrazoado não teve propriamente a ver com os rituais religiosos, que valem o que valem, segundo a crença e a fé religiosa de cada um, mas com a mudança que se operava em nossas casas, ou melhor, nas casas dos nossos pais, humildes agricultores, como era o caso. Com efeito, como a Sexta Feira Santa era Dia Santo de Guarda, não se podia, ou antes, não se devia trabalhar; pelo menos, no campo, como era o meu caso. E convenhamos que nada tinha a ver com a falta de energias para tal, resultante do jejum e da abstinência da carne, o que, não havendo dinheiro para comprar peixe, tornava, obviamente, a alimentação menos calórica, menos nutritiva. Era por ser dia de luto profundo. E era um dia de descanso tão sagrado, tão intenso, que nem “os passarinhos buliam dentro das suas cascas”, diziam os antigos, os nossos maiores. Porém, tal princípio enfermava duma exceção: não se trabalhava no campo, trabalhava-se na casa. Na verdade, era dia de limpezas profundas, as tradicionais barrelas. Havia que preparar a casa para a visita pascal, para condignamente receber Cristo ressuscitado, no próximo domingo. Baldes e baldes de água e sabão rosa davam novo rosto aos soalhos de madeira, muitas vezes já carcomida pelo caruncho e encardida com aquele lixo incrustado que se foi acumulando ao longo dum ano inteiro. De joelhos, com aquelas duras escovas de piaçaba, era um trabalho bem árduo para quem tinha de o fazer, normalmente as mulheres da casa. Os homens iam-lhes chegando os baldes da água e iam fazendo outras tarefas domésticas como, por exemplo, cuidar dos animais, adiantar as refeições, ir ao monte apanhar rosmaninho para pôr na entrada da casa a servir de tapete à comitiva do compasso ou visita pascal… O certo é que aquele ar lavado, ligeiramente colorido e bem cheiroso conferido pelo sabão já ajudava a mitigar um pouco todo aquele estado psicológico pesado e sombrio de velório, prenunciando a alegria que iria brotar ao terceiro dia.
Entretanto, aproveitava-se também para fazer as barrelas especialmente com os lençóis de linho que, para o efeito, eram colocados a estagiar durante uns dias, dentro de grandes recipientes de cortiça, sob camadas de cinza, até serem retirados, lavados no tanque ou na água do ribeiro, e posteriormente postos a corar ao sol.
O dia de Páscoa começava com a obrigatória ida à igreja, cada um com a melhor indumentária de que dispusesse, eventualmente estreando até alguma peça, para assistir à celebração da missa, após o que se regressava a casa, preparando-se a mesa, no centro da sala, com uma toalha e um pratinho com meia dúzia de amêndoas e o envelope com a côngrua, a ser levantado pelo juiz da igreja ou pelo sacristão que habitualmente acompanhavam o pároco; o primeiro com a cruz e o segundo com a sineta a anunciar a chegada e a caldeirinha da água-benta com que o presbítero aspergia a casa, saudando e, entre aleluias, dando a boa nova da ressurreição aos presentes perfilados para beijar a dita com aquele pungente busto de Cristo pregado, quando, afinal, o que se vinha anunciar era a sua ressurreição.
Lá fora, numa qualquer encruzilhada do lugar, soavam cânticos alusivos ao momento, de que recordo aquele que começava assim: “Já os passarinhos cantam/A ressurreição do Senhor… Aleluia! “
E eu, ganapo, lá ia assistindo a tudo isto, com mais ou menos devoção, mas, confesso-o, muito mais interessado em me cruzar com os meus padrinhos de batismo, na expetativa de poder vir a receber de folar os 10 (1$00) ou 25 tostões (2$50), quando a generosidade falava mais alto, com que me brindavam, quando não era aquele bolo típico coberto de açúcar e bem saboroso que doceiras da Ponte, São Pedro do Sul, vendiam no adro da igreja, à saída da missa.
Ermesinde, véspera do dia de Páscoa de 2021
Miguel Henriques
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