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domingo, 16 de março de 2014

SUBJECTIVIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL





"Os investigadores, atentos a todos os pormenores, por mais irrelevantes que à partida se lhes afigurassem, lá iam registando, minuciosamente, tudo quanto lhes era relatado.
Com efeito, segundo o relato, o Chico Zé tinha enviuvado, havia cerca de um mês. A esposa, de quem tivera aquele filho cuja fotografia guardava pateticamente na mão, e com a qual casara, havia uns sete anos, tinha-se despenhado da varanda da casa, há uns tempos atrás, quando recolhia a roupa do estendal e, pese embora tivesse sido socorrida de imediato, chegara ao Hospital já sem vida. Aliás, o caso foi até muito comentado em todo o bairro, tendo, inclusive, chegado à barra do tribunal, onde veio a ser discutido. A notícia chegou até a ser publicada com bastante relevo, nalguns jornais diários da região.
— Toda a gente o soube, senhores Inspectores, particularmente os vossos colegas que chegaram a investigar o caso — sublinhou o João Manuel.
— Efectivamente, tenho uma vaga ideia de ter lido qualquer coisa, nuns recortes que me vieram parar à secretária — recordou Cassiano Alves, leitor habitual e atento da rubrica «Casos do dia» que um dos directores havia tido a brilhante ideia de mandar compilar e distribuir, por fotocópia, diariamente, pelas brigadas, anexadas às respectivas ordens de serviço.
— Olhem que a coisa chegou a estar preta, para os lados do meu irmão, senhores inspectores!
— Como assim?
— É que, na ocasião, apareceram duas testemunhas com posições diametralmente opostas acerca das circunstâncias em que teria ocorrido a morte da minha cunhada, e a verdade é que, até em plena audiência de julgamento, continuaram cada uma a manter a sua, dificultando, julgo eu, o trabalho ao colectivo.
— E então? — quis saber Maldonado Pina.
— Eram, as duas senhoras, vizinhas, que diziam ter assistido a tudo das janelas de suas casas. Enquanto uma afirmava que, na altura da queda, o meu irmão tinha posto a mão direita no braço esquerdo da esposa, empurrando-a da varanda abaixo, a outra afirmava a pés juntos que, na verdade, vira o Chico Zé com a sua mão direita no braço esquerdo da minha cunhada, mas a tentar segurá-la, para que não caísse, quando as grades da varanda cederam, vejam lá como é que um mesmo gesto pode ter sido interpretado de duas maneiras tão opostas!
— Se calhar, nem uma coisa nem outra, mas, enfim, compreende-se, cada uma interpretou-o à sua maneira, se calhar, segundo os seus sentimentos, face às pessoas envolvidas — observou Maldonado Pina.
— Ou aos seus próprios cônjuges, à sua experiência pessoal, vá-se lá saber! — acrescentou Cassiano Alves.
— O senhor, por acaso, conhece-as? Sabe-nos dizer se são ambas casadas? — volveu Maldonado Pina.
— Mais ou menos… bem, casadas eu sei que elas são…
— Acha que são ambas felizes com os seus maridos? — interveio Cassiano Alves.
— Isso agora… a segunda eu julgo que sim, agora a primeira… correm por aí uns zunzuns de que, de vez em quando, há mosquitos por cordas, lá em casa.
— Ora aí poderá estar a explicação pela qual o mesmo fenómeno, o mesmo gesto, é capaz de surgir aos olhos de duas pessoas com significados completamente diferentes, quiçá opostos, como neste caso extremo, ou seja, tem tudo a ver com os estereótipos, a concepção que cada um de nós foi construindo acerca de determinada pessoa, coisa ou acontecimento, através do conhecimento directo, do convívio com eles, ou das nossas próprias vivências, daí partindo, depois, para a generalização — obtemperou Cassiano Alves.
— Ora, nem mais, aquela para quem o marido significa alguém que a ajuda e a protege, enfim, um amigo, viu o Chico Zé segurar a esposa, para que não caísse; a outra, para quem o cônjuge significa provavelmente um inimigo, alguém que lhe quer mal, ou por quem ela, pelo menos, não morrerá de amores, viu o outro empurrá-la para a morte, isto é, projectaram num casal que lhes era estranho os seus próprios sentimentos conjugais. Mas também me parece não ser descabido admitir que, aquela que o tinha como um casal desavindo, tivesse interpretado o gesto como uma agressão e que a que o tinha como um casal amigo e solidário, como uma tentativa de ajuda, é natural, não acham? — alvitrou Maldonado Pina.
— Sim, pode muito bem ter sido qualquer dessas hipóteses, senão mesmo um misto das duas — consentiu Cassiano Alves.
— Deve ser bem difícil ser-se juiz, eu não quereria vestir-lhes a pele — comentou João Manuel."

Excerto do meu romance "E AGORA?", onde, de alguma forma, é abordada a subjectividade da prova testemunhal vulgarmente designada por testemunho ocular, o que cria sérias dificuldades a quem julga.

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