Virtual
vs Real,
por Miguel
Henriques
Aqueles
últimos dias haviam-nos passado ambos tomados por uma tão estranha quão doce
ansiedade. O desejo de se poderem mirar olhos nos olhos, de se tocarem, de
sentirem aquele toque de pele que faz vibrar de emoção qualquer coração minimamente
apaixonado, de conhecerem o tom das suas vozes, segredo que deliberadamente
foram reservando para aquele encontro ao vivo, de conhecerem o cheiro
recíproco, enfim, tudo isto lhes vinha tirando literalmente o sono. E aquela
persistente curiosidade, que não cessava de lhes minar a mente, sobre qual
seria a reacção do outro ao cruzarem os seus olhares pela primeira vez, então é
que, qual bola de neve, não parava de lhes potenciar a ansiedade. Iriam
enrubescer, ficar completamente apáticos, ao ponto de as palavras lhes ficarem
entaladas na garganta ressequida pelo nervosismo, ou, pelo contrário, tudo
fluiria com a química naturalidade de duas almas gémeas que, pese embora
ansiosas, há muito anseiam por restabelecer a sua originária unicidade?
Conheceram-se
pela net, sem câmara, nas pontas dos dedos que diariamente acariciavam o
teclado como se do rosto do outro se tratasse. Apenas uma fotografia
supostamente actualizada de cada um, a utilizada no perfil da sua página na
rede social, descarregada para o ambiente de trabalho, lhes servia de
refrigério para as suas angústias e emoções, já que o recurso ao telefone foi,
desde o início, espontânea e intencionalmente posto de parte por ambos. Era
essa foto bem exposta e ampliada no ecrã, cujo sorriso contagiante tocava
indelevelmente o outro, que imprimia o cunho e o ritmo das conversas que iam
fluindo pelos dedos recíprocos no matraquear dos teclados. E a verdade é que,
nessa estática virtualidade, o sonho se coloria e enfunava à medida que os dias
iam passando.
Com
efeito, as perguntas eram mais do que muitas, e o momento tão almejado parecia
nunca mais chegar, como se a sua ansiedade tivesse de escalar aquele íngreme
calendário que parecia ter parado no tempo, travado por um qualquer génio do
mal, avesso ao amor.
Eis
que, finalmente, esse dia chegou. Luana, no sentido de se sentir mais segura e
confortável, havia convidado uma amiga para a acompanhar naquela que já vinha
considerando a mais fascinante aventura da sua vida, pese embora isso fosse um
segredo que apenas para si guardara. Uma amiga a quem, conhecendo-a há muito,
não passou despercebido o estranho nervosismo que de si se apoderara, mas que
soubera conter a curiosidade, esperando para ver, pois a amizade não pode ser
beliscada pelo simples facto de cada um pretender guardar exclusivamente para
si um simples núcleo de privacidade. O rosto, os olhos, as incontornáveis
janelas do edifício humano, raramente conseguem esconder o que nos vai no
coração… e na alma. No entanto, não quis estragar o momento da amiga com
perguntas inoportunas ou menos pertinentes que pudessem denunciar uma qualquer
tentativa de devassa de um possível segredo íntimo que aquela eventualmente guardasse
e quisesse reservar para si e para os seus botões.
Enquanto
isso, Mel Igu, personagem principal no evento que iria ter lugar, aguardava, nervosamente,
no exterior do auditório, a aparição daquela que nos últimos tempos lhe vinha
tomando conta de todos os seus instantes, absorvendo por completo os seus
pensamentos, dominando integralmente as suas emoções. Desde o dia em que pela
primeira vez, no silêncio dos seus aposentos, os seus dedos cúmplices trocaram
declarações de amor recíproco, os dias haviam passado a ser bons ou maus
conforme o estado de humor do seu relacionamento. Aquele constante correr para
o computador, na expectativa de “encontrar” o outro, para com ele compartilhar
o seu dia-a-dia, tornara-se já não só uma simples rotina, mas uma necessidade
premente para o anímico bem-estar de qualquer deles. Um dia-a-dia partilhado
nas pontas dos dedos, sem imagem nem som, apenas o do estrepitoso bater do
teclado ao ritmo das emoções.
Escassos
minutos antes da hora aprazada para o início do evento, numa altura em que os
olhos ansiosos de Mel Igu varriam o horizonte, eis que vislumbra Luana a aproximar-se,
passo estugado, mas seguro, acompanhada pela amiga, também esta uma velha amiga
e conhecida daquele, mas que já não via desde a infância. Escusado será dizer
que os olhares de Luana e Mel Igu, emoldurados por um lindo e enternecedor
sorriso, ficaram presos um no outro, como que por hipnose, até ao momento em
que os seus rostos se tocaram pela primeira vez, naquele ósculo bilateral, delicado,
elegante, momento em que pareceu terem-se fechado para saborearem até à
exaustão toda a magia do encontro. Só a aproximação da amiga para o cumprimento
da praxe teve o condão de quebrar aquele encanto, a que, por cortesia, ele teve
de anuir. Mas a hora da conferência aproximava-se e, noblesse oblige, a plateia, bem como a pontualidade que sempre fora
apanágio do orador, reclamavam a sua presença imediata, pelo que só no final do
evento poderiam dar sequência àquele desfilar de emoções que os assaltara.
Encerrada
a sessão, eram horas de jantar, e nada melhor do que uma refeição a dois, em
torno duma mesa, num recatado restaurante das redondezas, onde os olhares
alheios não pudessem quebrar ou sequer perturbar o encanto do momento.
-
Adorei aquela tua dissertação, Mel Igu, sobre o amor conjugal e toda a problemática
que os anos de casamento acarretam para a convivência pacífica e harmoniosa do
casal!
-
Obrigado, Luana! Como referi e toda a gente sabe, na vida do casal, nem tudo
são rosas. É natural que, mais cedo ou mais tarde, vá surgindo alguma conflitualidade.
A questão está em saber, ser capaz de avaliar aquilo por que vale a pena lutar,
aquilo que é viável e pode contribuir para a saudável estabilização e
consolidação dos afectos, e aquilo que, a manter-se, apenas vai contribuindo
para o desgaste da relação e dos seus protagonistas, aumentando a sua
inevitável conflitualidade no palco da tragédia conjugal. E, em face disso,
como é óbvio, há um momento em que ambos têm de reflectir e, se necessário for,
dar um murro na mesa, dizer basta, partindo para outra, como se costuma dizer,
sem pudores nem preconceitos, sejam eles de que natureza forem. A vida, em meu
entender, deve celebrar o amor!
- És
um hedonista, Mel Igu, já deu para perceber!
- Não
tenhas dúvidas, Luana! Para mim, a vida só faz sentido enquanto ela nos
conseguir proporcionar algum prazer. A dor, o sofrimento, a doença, são meros
degraus na íngreme escadaria, mais ou menos longa, que desce para a morte. É a
natureza das coisas a ditar o seu curso! Tudo o que o Homem tem feito é
contrariá-la com recurso à medicina e a outros ramos da ciência. E, como disse,
quer na saúde física, quer na psíquica ou sentimental, quando a felicidade, o
prazer, passaram a ser meras miragens, insistir na caminhada não é mais do que
prolongar a agonia.
- Bom,
mudemos de assunto! E que tal brindarmos ao nosso encontro? Ou será que é
reencontro?!
- Seja
aquilo que for, Luana, o que importa é que estejamos assim, bem juntinhos, de olhos
nos olhos, frente a frente, mãos firmes e dedos solidamente entrelaçados nos braços
estendidos sobre a mesa. Brindemos!
- Que
lindo! – retorquiu Luana, embevecida – Brindemos!
E o
brinde foi selado com um longo beijo, um beijo com sabor, um sabor real,
sentido no entrecruzar das línguas sôfregas. O mundo fechou-se em seu redor,
naquele abraço absorvente que teve o condão de lhes incendiar a libido. As
palavras saíram de cena, dando lugar aos sentidos, os dedos abandonaram a
solidão do teclado, para se ocuparem com coisas bem mais reais e deliciosas. O
virtual acabara de representar o seu papel.
- O
toque, Mel Igu! Como eu sentia falta disto! Nada pode suprir a falta do outro,
quando o amor os une e nele se plasmam todos os seus sonhos e emoções. Nenhuma
virtualidade, por mais cor-de-rosa que se pinte, nos preenche tanto como um
simples entrelaçar dos dedos!
-
Aproveitemos o momento, Luana! Que ele venha a ser a sementeira afável e
generosa que, no futuro, nos venha a proporcionar o melhor dos frutos, para
que, se possível, de mãos dadas, neste enlevo, consigamos sulcar a vida
reduzindo ao mínimo os escolhos que pelo caminho nos forem surgindo.
E de
novo se ergueram os copos: «chim-chim!»
- À
nossa! – proclamaram ambos, em uníssono.
(In “A
Arte Pela Escrita Oito – Coletânea de Prosa e Poesia”, organização e edição do
sítio Escritartes e Mosaico de Palavras Editora, 2015, Porto, pág. 323 a 326)