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domingo, 2 de novembro de 2014

CRÓNICA DE UMA SAUDADE

CRÓNICA DE UMA SAUDADE

Faz hoje, 2 de Novembro de 2014, 35 anos.

Creio que por volta das 21 horas — já lá vai muito tempo e a memória desse tempo, como é natural, começa a esbater-se —, soou a campainha da porta do meu apartamento, um rés-do-chão sito na Rua de Jaca, Pedroso, Vila Nova de Gaia.

Na sala, e enquanto a minha mulher, enfermeira, a trabalhar no Hospital Eduardo Santos Silva, relativamente próximo de casa, não regressa do seu turno da tarde, vou-me ocupando com a filhota, uma bebé de oito meses, ao mesmo tempo que vou ouvindo música na rádio.

Pego na miúda ao colo e corro à porta, para ver quem era. Mal a abro, dou de caras com o colega da P.J., Ferreira Martins, e com a telefonista da mesma instituição, D. Ivone. Talvez ainda mais surpreendidos do que eu, pois não contavam comigo, e com um certo “ar de caso”, como se costuma dizer por estas bandas, disparam, de rajada, um «Olá! Onde é que mora o Garcia?»

— Mora aqui no andar de cima. Porquê? Aconteceu alguma coisa? — indaguei, perante aqueles olhares meio esgazeados.

— Infelizmente, aconteceu. Acaba de morrer num acidente de viação e precisamos de dar a notícia à viúva.

Bom, não sou pessoa de desmaio fácil, senão por certo teria desfalecido e deixado cair a bebé, tal o impacto que tal notícia, assim disparada a frio, em mim causou. Por certo, aos mensageiros daquela desgraça não terá passado pela cabeça que o Garcia era para mim, à data, para além de colega, provavelmente o meu melhor amigo.

Conhecemo-nos no curso de agentes da P.J., cerca de três anos antes, e cedo nos tornámos amigos, ao ponto de ambos termos comprado cada um o seu apartamento, no mesmo edifício e sensivelmente pela mesma altura, havia pouco mais de seis meses. A partir daí, as nossas famílias passaram a visitar-se quase diariamente, ora na casa dum ora na do outro. E como a então minha mulher trabalhava por turnos e acontecia eu estar frequentemente sozinho com a minha filha, era convidado a passar o serão com o casal Garcia que, por essa altura, tinha também uma menina de tenra idade, a Marta Isabel, cerca de um ano mais velha do que a minha. Foi, aliás, no convívio quase diário com a sua menina que fiz o meu estágio de pai, por assim dizer.

Como estávamos em princípio de vida profissional e a começar a construção de um lar a expensas próprias, já com encargos financeiros apreciáveis face aos parcos proventos do trabalho, a austeridade havia-se instalado comigo lá em casa, pelo que não dispunha de automóvel, nem sequer de telefone. Os telemóveis ainda não tinham feito a sua aparição.

— Não te preocupes, Miguel, quando quiseres telefonar, tens o meu telefone, que já mandei instalar. E se, numa qualquer emergência, precisares de viatura, tens ali o meu carro! — sentenciou o Garcia, em mais um alarde da sua generosidade.

Na ocasião, para além da sua colocação na secção de homicídios, ele fazia uma perninha no recém-criado gabinete de imprensa, onde se ocupava a recolher e tratar o noticiário de cariz policial constante dos jornais diários. E como jornais era coisa que havia de sobra naquele gabinete, ele aproveitava para trazer consigo um qualquer diário que fazia o obséquio de me meter na caixa do correio, caso chegasse a casa primeiro do que eu.

Por essa altura, “os homicídios” investigavam o assassinato dum conhecido industrial, ocorrido em circunstâncias que apontavam para uma eventual execução levada a cabo por alguém relacionado com um grupo político contra-revolucionário de que ele fazia ou teria feito parte. Estávamos nos primeiros anos pós-Revolução dos Cravos, convém, a propósito, lembrar.

A verdade é que no regresso de mais uma dessas diligências, ao fim do dia, na localidade de Vila Garcia, arredores da cidade de Viseu, quando conduzia uma viatura em que viajava com um colega mais antigo, colidiu de frente com outra viatura que circulava fora de mão, causando-lhe a morte quase imediata.

Voltando ao fatídico dia e, mais precisamente, ao momento do conhecimento do seu trágico falecimento, devo dizer que fiquei de tal forma abalado que resolvi pedir ajuda a um outro vizinho e amigo comum, para que nos acompanhasse na comunicação à viúva. Como fazê-lo? Ser directo? Não, seria demasiado violento. Decidimos, então, que o melhor seria relatar o acidente, com a informação de que estava gravemente ferido no hospital de Viseu, para onde foram conduzidos os sinistrados.

Abeirámo-nos da porta e toquei a campainha. A Olga, assim se chamava a esposa, abre a porta e, ao dar de caras comigo:

— Ah! És tu, Miguel, julguei que fosse o António Manuel! Estou à espera dele para jantar.

Apresentei-lhe os colegas e pedi licença para entrarmos, pois trazíamos notícias dele.

— Infelizmente, não são as melhores, Olga — consegui, a custo, adiantar.

Ao reparar nos nossos olhos humedecidos e no semblante carregado, a Olga recusou-se a acreditar que o marido estivesse simplesmente ferido.

— Leva-me lá, Miguel, por favor! Quero vê-lo! Pega no meu carro e leva-me lá!

Entretanto, a então minha mulher acabava de chegar do trabalho e juntamente com uma outra vizinha e amiga, também comum, começaram a procurar no guarda-fatos do casal uma roupa para vestir o cadáver. Enquanto isso, eu ia-me ocupando a tentar reconfortar a Olga, mantendo-a na sala, para que se não apercebesse do que as amigas faziam, já que, entretanto, tinham acabado de chegar mais uns colegas dispostos a prestar apoio, disponibilizando-se a levar a roupa para o hospital de Viseu.

Ora se até ao momento ainda fora possível disfarçar a situação, a partir da chegada desses colegas, de gravata preta e olhos humedecidos, o mistério acabou e a Olga ficou, definitivamente, a saber que acabara de perder o seu António Manuel.

Confesso que foi a primeira vez que experimentei a dolorosa sensação de perder um amigo, um verdadeiro AMIGO. Tão dolorosa que, ainda hoje, volvidos estes 35 anos, continua a doer. E porque a dor me pedia um desabafo, fi-lo, então, para o papel.



À MEMÓRIA DO MEU GRANDE AMIGO GARCIA

Bom companheiro de toda a hora,
                        Amigo sempre sincero e leal,
                        Partiste, dando-me surpresa tal
                        Que, saudosa, a minha alma chora!


                        Contigo privava de perto, agora,
                        Já não encontro presença igual:
                        Sempre alegre, bem-disposto... Afinal,
                        Para os bons é curta a demora!


                        Tão breve sonho foi a tua vida,
                        Deixando em mil pedaços partida
                        A alma de quem te queria bem...


                        Que a tua mensagem seja vivida,
                        A tua imagem jamais esquecida
                        E que descanses, em paz, no Além!


Em nome e por sugestão dos colegas de curso, coube-me a honra de produzir a quadra aposta na lápide colocada a assinalar a sua campa, no cemitério da sua terra natal, Pombal de Ansiães, Carrazeda de Ansiães:

Na surpresa da partida,
Nem um abraço te demos.
Numa saudade incontida,
Jamais te esqueceremos.


NOTÍCIA DO ACIDENTE PUBLICADA NO DIA SEGUINTE, NO JORNAL DE NOTÍCIAS




Comigo, religiosamente, guardo as únicas duas fotografias do nosso convívio, na tua curta passagem por este mundo.


(No baptizado da minha filha, levando a sua filhota Marta Isabel ao colo)



(Na praia, com a esposa, Olga, a sua sobrinha Cristina e a filhota Marta Isabel, junto a mim)



Mais uma vez, companheiro e amigo António Manuel Garcia, obrigado pela tua amizade.
Um abraço. Até sempre!

P.S.:
Beijinhos para as minhas queridas amigas Olga e Marta Isabel

Porto, 2 de Novembro de 2014


Miguel Henriques