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sexta-feira, 23 de maio de 2014

AFINAL, QUE CIVILIZAÇÃO É ESTA?


(Igreja Paroquial de Valongo dos Azeites)                 


AFINAL, QUE CIVILIZAÇÃO É ESTA?

Por motivos de ordem familiar, tive necessidade de me deslocar, no passado dia 2 de Maio do ano em curso, do Porto a Valongo dos Azeites, em São João da Pesqueira, e ali permanecer durante algumas horas.
Em boa verdade, convenhamos que é sempre um passeio aliciante, este que é feito pelas terras durienses, em qualquer época do ano. Mas na Primavera e no Outono, então, é uma autêntica maravilha, um deslumbramento, o podermos contemplar a forma e o colorido daqueles vinhedos magníficos ornamentando as  encostas do Douro.
Mas se a natureza tem o condão de nos surpreender pela positiva, com quadros destes, magníficos, verdadeiramente idílicos, dum bucolismo estonteante, um autêntico deleite para a alma, já a comunidade humana – ou melhor, algumas das pessoas que a compõem – me surpreendeu pela negativa. Com imenso pesar o digo, acreditem!
E isto a propósito dos factos que, havia cerca de duas semanas, abalaram aquela pacata localidade do interior rural, perpetrados pelo cidadão Manuel Baltazar, mais conhecido por “Palito”, e que conduziram à morte da sua ex-sogra e duma irmã desta, bem como à tentativa de assassinato da sua ex-mulher e da própria filha de ambos. Tudo isto na sequência de disparos com arma de fogo, uma caçadeira, e utilizando cartuchos carregados de zagalotes como munição, própria para caça-grossa. Disparos esses que constituíram o culminar de ameaças reiteradas de há alguns anos a esta parte, e que, ao que por ali consta, teriam como alvo um universo ainda mais vasto, mantendo, por isso, em sobressalto alguns dos habitantes daquela localidade.
De referir que tal indivíduo, recentemente divorciado, manteria uma obsessão mórbida pela ex-esposa a quem teria infligido maus-tratos diversos ainda durante a vida em comum, para além de a perseguir sistematicamente, ao ponto de ter sido proibido pelo tribunal de se aproximar da mesma, estando por isso vigiado remotamente pelo Instituto de Reinserção Social, através do mecanismo vulgarmente designado por “pulseira electrónica”.
Mecanismo este que se não mostrou suficientemente eficaz para impedir a aproximação, e daí a tragédia.
Com efeito, foi-me dado observar “in loco” o aparato de elementos da GNR montados a cavalo, patrulhando as ruas da localidade e a montanha à sua volta, no intuito, presumo eu, de proporcionar alguma segurança àquela comunidade, impedindo, pelo menos, o homicida de ali entrar e cumprir a ameaça que pairava sobre alguns residentes constantes duma lista que ele elaborara e que teriam, de alguma forma, testemunhado a favor da ex-esposa no processo de divórcio e nos de ofensas corporais (violência doméstica) de que ela havia sido vítima e contra ele intentara. Para além destes, também os investigadores da Polícia Judiciária se iam desdobrando em contactos com os locais, no sentido de irem recolhendo informação que lhes permitisse chegar ao suspeito. Posso afirmá-lo, porque os vi, nesse labor.
Obviamente que, com o homicida a monte e todo aquele aparato policial, o tema das conversas desembocava inevitavelmente na fuga do “Palito” e no tempo que a mesma já levava, sem que as autoridades lhe tivessem conseguido deitar a mão.
«Cá para mim, já deve estar morto, por aí, nalgum recanto da montanha» – alvitrava um, secundado por mais uns quantos.
«Hum! Não, o que eu acho é que alguém o deve estar a ajudar, fornecendo-lhe comida e roupa! Ele tem muitos amigos por aí, especialmente caçadores que com ele iam à caça» – argumentavam outros.
«Olhem, ele a mim não me fez mal nenhum, portanto, nada tenho contra ele! Aliás, ele até nem é má pessoa, ajudou a criar uns irmãos. Tem é aquela fixação pela mulher, o que é que se há-de fazer! Se elas lhe faziam a vida negra, olha, ele resolveu de vez o assunto» – atirou um terceiro, mostrando-se profundo conhecedor do quotidiano do suspeito e suas vítimas.
Entretanto, no meio deste colóquio, eis que surge uma jovem senhora, completamente descontextualizada daquela filosofia que, cheia de coragem, lá arriscou: «Não, quanto a mim, acho que ele deve pagar pelo que fez! Tem de prestar contas à justiça! Aquilo não é coisa que se faça: matar, assim, as mulheres… até a própria filha...  só a não matou porque não calhou! E sabe-se lá se não irá matar ainda mais alguém?! Aquelas pessoas que testemunharam em tribunal contra ele, em defesa da mulher, andam por aí cheiinhas de medo que ele lhes apareça pela frente! Tenham lá paciência, mas não, não é justo o que ele fez!»
Entretanto, no passado dia 21 de Maio, transcorrido mais de um mês sobre a data dos factos, o suspeito veio a ser detido pela Polícia Judiciária e apresentado, no dia seguinte, ao Juiz de Instrução Criminal competente, o de São João da Pesqueira, que lhe decretou, como medida de coacção, a prisão preventiva.
Bem, o que se passou à porta daquele tribunal, aquando da sua chegada, deixou-me, a mim e a muita gente que ainda tem alguma noção dos valores em sociedade e que ainda os vai cultivando, completamente boquiabertos, diria mesmo que, literalmente estarrecidos.
Não é que a maioria dos presentes, e contavam-se algumas dezenas, desatou a bater palmas, aplaudindo o suspeito, como se de um herói se tratasse! Alguns que até nem se coibiram de falar para a imprensa, manifestando compaixão para com o indivíduo, como se o mal que fizera tivesse sido o ter pisado inadvertidamente um ninho de lagartas!
E as vítimas? As que foram mortas ou gravemente feridas, com sequelas físicas e psicológicas para o resto das suas vidas?! E as que viveram todo este tempo em sobressalto, sob ameaça do mesmo indivíduo, apenas porque foram solidárias para com alguém que por ele vinha sendo publicamente maltratado e oprimido?! Essas não merecem uma palavra de solidariedade?!
Poderá ter-se esta gente como gente civilizada?
Afinal, que civilização é esta?

Ermesinde, 23-05-2014

Miguel Henriques