(Igreja Paroquial de Valongo dos Azeites)
AFINAL, QUE CIVILIZAÇÃO É ESTA?
Por motivos
de ordem familiar, tive necessidade de me deslocar, no passado dia 2 de Maio do
ano em curso, do Porto a Valongo dos Azeites, em São João da Pesqueira, e ali
permanecer durante algumas horas.
Em boa
verdade, convenhamos que é sempre um passeio aliciante, este que é feito pelas terras
durienses, em qualquer época do ano. Mas na Primavera e no Outono, então, é uma
autêntica maravilha, um deslumbramento, o podermos contemplar a forma e o colorido
daqueles vinhedos magníficos ornamentando as encostas do Douro.
Mas se a
natureza tem o condão de nos surpreender pela positiva, com quadros destes, magníficos,
verdadeiramente idílicos, dum bucolismo estonteante, um autêntico deleite para
a alma, já a comunidade humana – ou melhor, algumas das pessoas que a compõem –
me surpreendeu pela negativa. Com imenso pesar o digo, acreditem!
E isto a
propósito dos factos que, havia cerca de duas semanas, abalaram aquela pacata
localidade do interior rural, perpetrados pelo cidadão Manuel Baltazar, mais
conhecido por “Palito”, e que conduziram à morte da sua ex-sogra e duma irmã desta,
bem como à tentativa de assassinato da sua ex-mulher e da própria filha de
ambos. Tudo isto na sequência de disparos com arma de fogo, uma caçadeira, e
utilizando cartuchos carregados de zagalotes como munição, própria para
caça-grossa. Disparos esses que constituíram o culminar de ameaças reiteradas
de há alguns anos a esta parte, e que, ao que por ali consta, teriam como alvo
um universo ainda mais vasto, mantendo, por isso, em sobressalto alguns dos habitantes
daquela localidade.
De referir
que tal indivíduo, recentemente divorciado, manteria uma obsessão mórbida pela
ex-esposa a quem teria infligido maus-tratos diversos ainda durante a vida em comum,
para além de a perseguir sistematicamente, ao ponto de ter sido proibido pelo
tribunal de se aproximar da mesma, estando por isso vigiado remotamente pelo
Instituto de Reinserção Social, através do mecanismo vulgarmente designado por “pulseira
electrónica”.
Mecanismo
este que se não mostrou suficientemente eficaz para impedir a aproximação, e
daí a tragédia.
Com efeito,
foi-me dado observar “in loco” o aparato de elementos da GNR montados a cavalo,
patrulhando as ruas da localidade e a montanha à sua volta, no intuito, presumo
eu, de proporcionar alguma segurança àquela comunidade, impedindo, pelo menos,
o homicida de ali entrar e cumprir a ameaça que pairava sobre alguns residentes
constantes duma lista que ele elaborara e que teriam, de alguma forma,
testemunhado a favor da ex-esposa no processo de divórcio e nos de ofensas
corporais (violência doméstica) de que ela havia sido vítima e contra ele
intentara. Para além destes, também os investigadores da Polícia Judiciária se
iam desdobrando em contactos com os locais, no sentido de irem recolhendo
informação que lhes permitisse chegar ao suspeito. Posso afirmá-lo, porque os
vi, nesse labor.
Obviamente
que, com o homicida a monte e todo aquele aparato policial, o tema das
conversas desembocava inevitavelmente na fuga do “Palito” e no tempo que a mesma
já levava, sem que as autoridades lhe tivessem conseguido deitar a mão.
«Cá para mim, já deve estar morto, por aí,
nalgum recanto da montanha» – alvitrava um, secundado por mais uns quantos.
«Hum! Não, o que eu acho é que alguém o deve estar
a ajudar, fornecendo-lhe comida e roupa! Ele tem muitos amigos por aí,
especialmente caçadores que com ele iam à caça» – argumentavam outros.
«Olhem, ele a mim não me fez mal nenhum,
portanto, nada tenho contra ele! Aliás, ele até nem é má pessoa, ajudou a criar
uns irmãos. Tem é aquela fixação pela mulher, o que é que se há-de fazer! Se
elas lhe faziam a vida negra, olha, ele resolveu de vez o assunto» – atirou
um terceiro, mostrando-se profundo conhecedor do quotidiano do suspeito e suas
vítimas.
Entretanto,
no meio deste colóquio, eis que surge uma jovem senhora, completamente
descontextualizada daquela filosofia que, cheia de coragem, lá arriscou: «Não, quanto a mim, acho que ele deve pagar
pelo que fez! Tem de prestar contas à justiça! Aquilo não é coisa que se faça:
matar, assim, as mulheres… até a própria filha... só a não matou porque não calhou! E sabe-se lá
se não irá matar ainda mais alguém?! Aquelas pessoas que testemunharam em
tribunal contra ele, em defesa da mulher, andam por aí cheiinhas de medo que
ele lhes apareça pela frente! Tenham lá paciência, mas não, não é justo o que
ele fez!»
Entretanto,
no passado dia 21 de Maio, transcorrido mais de um mês sobre a data dos factos,
o suspeito veio a ser detido pela Polícia Judiciária e apresentado, no dia
seguinte, ao Juiz de Instrução Criminal competente, o de São João da Pesqueira,
que lhe decretou, como medida de coacção, a prisão preventiva.
Bem, o que se
passou à porta daquele tribunal, aquando da sua chegada, deixou-me, a mim e a
muita gente que ainda tem alguma noção dos valores em sociedade e que ainda os
vai cultivando, completamente boquiabertos, diria mesmo que, literalmente
estarrecidos.
Não é que a
maioria dos presentes, e contavam-se algumas dezenas, desatou a bater palmas,
aplaudindo o suspeito, como se de um herói se tratasse! Alguns que até nem se
coibiram de falar para a imprensa, manifestando compaixão para com o indivíduo,
como se o mal que fizera tivesse sido o ter pisado inadvertidamente um ninho de
lagartas!
E as vítimas?
As que foram mortas ou gravemente feridas, com sequelas físicas e psicológicas
para o resto das suas vidas?! E as que viveram todo este tempo em sobressalto,
sob ameaça do mesmo indivíduo, apenas porque foram solidárias para com alguém
que por ele vinha sendo publicamente maltratado e oprimido?! Essas não merecem
uma palavra de solidariedade?!
Poderá ter-se
esta gente como gente civilizada?
Afinal, que
civilização é esta?
Ermesinde,
23-05-2014
Miguel
Henriques