A custo, obviamente, lá se vão arrastando os primeiros dias de horas intermináveis, até que bate à porta o sábado, 20 de abril. Um dia em que, em circunstâncias normais, seria suposto estarmos a partir ou já ter partido de fim de semana. Pelo menos, na recruta assim acontecia. Mas ali, não! Tal como tinha acontecido nos dias precedentes, findo o jantar, recolhemo-nos à caserna, para descansar.
Porém, pelas 21 horas, estávamos já deitados na cama, quando fomos surpreendidos, através da instalação sonora da caserna, pela ordem de formar imediatamente no refeitório, trajados com o uniforme n.º 3 e sem nada nos bolsos. Uma ordem estranha — achei-o eu, na altura, mal imaginando que, afinal, situações do género iriam passar a ser, quase diria, a ementa diária! —, pois era a primeira vez que tal acontecia. Mas, enfim, como a regra para todos os formandos — cadetes e instruendos, as duas categorias que integravam a companhia — era o sigilo absoluto, o desconhecimento puro e simples do que nos poderia acontecer no momento a seguir, e o que quer que fosse não seria, por certo, coisa boa, deixou-nos, e a mim, particularmente, que nunca cuidei de saber como é que ali se exorcizavam os demónios que nos infernizavam o dia-a-dia, estrambelhando-nos por completo os sentimentos, e se montavam e punham em andamento as máquinas de guerra, suspensos de uma ansiosa expectativa. Tal como já deixei dito noutra sede, desde que fui obrigado a ir para a tropa, tornei-me numa espécie de robô comandado por terceiros, ciente de que a minha opinião ou posição, fosse ela qual fosse, não contaria para nada. O meu sentimento de impotência era total. E, assim sendo, quem sabe se até antevendo nessa atitude de absoluto alheamento uma forma de evitar sofrer por antecipação, nunca me preocupei em saber que tipo de instrução ali se ministrava, quais as provas que envolvia, como contornar ou tentar contornar situações de aperto, enfim! Situação inversa passava-se, vim a sabê-lo mais tarde, com outros camaradas que, ou porque quisessem mesmo ser rangers ou porque já tivessem conhecido alguém que por ali tivesse passado, já tinham uma noção mais ou menos aproximada do que os esperava. Eu não. Para mim tudo era novidade.
Mal acabou de se reunir no refeitório todo o efetivo, eis que, no mais absoluto silêncio, e com intervalos de cerca de um minuto, fomos sendo mandados sair um por um. Levou esta operação de evacuação cerca de duas horas, ou não fôssemos, ao todo, creio que cento e vinte e seis homens. Foram duas longas e intrigantes horas para mim, já que acabei por ser dos últimos a sair. Ao chegar à porta, a noite escura como o breu, o alferes Cambão, reconheci-o pela voz, barrou-me a passagem, e com um ar que inspirava terror, disparou, em catadupa, toda uma série de perguntas cínicas, agoirentas, enquanto me conduzia para um local situado a cerca de uns trinta metros, ao longo da parede da caserna e no sentido da carreira do tiro:
— Você é emotivo? Sofre do coração? Sabe para onde é que vai? Sabia que ainda pode morrer hoje? Tem família? Já se despediu dela? Tem medo dos lobos? Sabe que hoje pode ser devorado por eles? Sabe que costumam morrer muitos homens nesta especialidade e que você pode ser um deles, hoje mesmo? — disparou, de rajada, em menos de um minuto.
E eu, intrigado com tudo aquilo, lá fui disfarçando como pude o nervosismo, respondendo-lhe a todas as questões o mais serenamente que me foi possível. Uma vez ali chegado, ao dobrar a esquina, ainda pude descortinar, por entre a escuridão, a uns escassos dois ou três metros de mim, o vulto de um camarada, de olhos vendados e mãos atadas atrás das costas, que ia sendo empurrado por um graduado, sobre umas botijas de gás que se encontravam tombadas no chão e que, obviamente, o faziam tropeçar e cair. Tive, assim, à socapa dos instrutores e a seu nítido contragosto, a oportunidade de antever uma pitadinha do que me estava reservado para o momento seguinte. Efetivamente, num ápice, dois indivíduos que não pude identificar, emergindo do escuro, agarraram-me, e enquanto um, que me abordou pela frente, me tapava os olhos com uma venda, o outro, por detrás, atava-me as mãos com um cordel de sisal. Concomitantemente, um deles, que creio ter sido um dos monitores do meu grupo de combate, o Gonçalves, um cabo miliciano cuja voz tipicamente gutural a tornava inconfundível e, por isso, facilmente identificável, agora intencionalmente mais cavernosa e assustadora, perguntou-me se trazia dinheiro comigo, fazendo-me uma revista sumária ao vestuário e deixando-me uma das calças, que usavam um elástico para se ajustarem ao cano da bota, subida, aí pelo meio da perna, exposta ao flagelo do frio da noite. Tendo-lhe respondido negativamente, foi desfiando todo um rosário de perguntas, em tudo idênticas às que o alferes já havia feito ao longo do percurso até ali. Findas aquelas operações, fui conduzido, seguro por um braço, e aos empurrões pelas costas, já que, nada podendo ver, tinha de tatear cuidadosamente o solo com os pés, até à retaguarda de um camião militar. Proferindo todo aquele chorrilho de perguntas agoirentas com o óbvio objetivo de me aterrorizar, o cabo miliciano lá me ajudou a trepar para a dita viatura, onde já se encontravam outros camaradas meus, nas mesmas condições, sentando-me num dos cantos, lá ao fundo, junto à cabina. Pelo ruído da azáfama envolvente, pude perceber que havia por ali, prontos a arrancar, outros camiões já carregados de pessoal.
Instantes decorridos, as viaturas puseram-se finalmente em marcha.
— Para onde iremos nós? — foi a minha primeira pergunta, ingénua e instintivamente, aliás, como se isso tivesse alguma relevância para o que quer que estivesse para me acontecer. De toda a maneira, e quanto mais não fosse, sempre me satisfaria uma natural curiosidade que me advinha do facto de ter chegado a ver lá para as bandas da minha terra, em anos anteriores, efetivos desta unidade, em exercícios militares.
Sentados na carroçaria coberta por um oleado, e presumindo que quem connosco viajava seriam camaradas nossos, fomo-nos interrogando uns aos outros sobre o que nos iria acontecer, mas ninguém arriscava uma resposta. Entretanto, e porque o nó que me atava os pulsos não tivesse ficado lá muito apertado, fui tentando, tentando, até que, decorrido algum tempo, consegui desatá-lo e libertar as mãos, discretamente, não fosse o rouco monitor do meu grupo, que nos acompanhava e vigiava — percebi-o pela voz, mal a viagem se iniciou —aperceber-se da marosca. Então, com uma delas afastei um pouco a venda e com a outra a prega do oleado da viatura, permitindo-me espreitar para o exterior. Mas… nada! Não consegui reconhecer minimamente o percurso. Apenas escuridão e mato a bordejar a estrada. Voltei a reposicionar as mãos atrás das costas, simulando-as atadas. Transcorridos largos quilómetros, quiçá para cima de três dezenas, aí por volta da uma e meia da madrugada, os camiões que integravam a coluna foram começando a parar, para, de centena em centena de metros, calculámos nós, irem largando um de nós, na berma da estrada, vendado e algemado tal como havíamos sido carregados para a carroçaria. Como estratégia, mal suspeitámos do que estava para acontecer — segundo alguém que já tinha obtido alguma informação sobre as provas curriculares do curso e que fazia parte da carga —, combinámos que, aquele que fosse largado, gritaria ranger!, para que os outros pudessem aperceber-se da sua localização e acorrer em seu auxílio, em caso de necessidade. Apesar de juntos há escassos dias, eram já os primeiros sinais de solidariedade a manifestarem-se entre nós. E, efetivamente, à medida que o camião arrancava, depois de largado mais um instruendo — e refiro-me apenas aos instruendos, porquanto os cadetes, tanto quanto julgo saber, terão sido largados noutra zona —, o espaço passou a ser entrecruzado por gritos rasgando as trevas, a que respondiam outros e mais outros, sempre devolvidos pelo silêncio das montanhas, assim se assinalando a presença de cada um, para que quem se encontrasse pelas proximidades, acorresse em seu auxílio, ajudando-o, sobretudo, a desembaraçar-se do cordel que lhe atava as mãos.
Finalmente, eis que chegou a minha vez. Como eu fosse um dos últimos dois, talvez por isso, presumo, fomos largados juntos. Auxiliados a descer do camião pelos dois monitores do grupo, os dois cabos milicianos que nos acompanhavam — vim a sabê-lo, naquele momento —, perguntaram-nos se queríamos ajuda para nos desembaraçarmos do cordel. Agradeci-lhes a boa vontade e arrisquei a declinar a proposta, obviamente por desnecessária. A escuridão e o espesso manto de nevoeiro envolvente haviam sido meus cúmplices no desatar do nó sem que eles se tivessem apercebido.
Pude, então, constatar que estávamos no cimo de uma montanha, envoltos em neblina fria e húmida a trespassar-nos os ossos. Mais tarde, vim a saber tratar-se do local designado por Portas de Montemuro, situado no cimo da serra do mesmo nome, na estrada que liga Castro Daire a Cinfães. Aparentando uma certa cordialidade, aqueles dois graduados ofereceram-nos um cigarro a cada um. Como eu não fumava, agradeci a cortesia, mas, obviamente, não aceitei o tabaco. Mas, mesmo que fumasse, por certo não o teria aceitado, pois eu já havia chegado a um ponto em que tudo o que aparentemente de bom pudesse vir de cima me era fortemente suspeito. Tudo me soava a cinismo, o que, sinceramente, não era coisa que minimamente me agradasse.
De acordo com as instruções recebidas no momento do embarque, deveríamos, logo que nos desembaraçássemos dos cordéis e das vendas, regressar à companhia o mais depressa possível, mas sempre à corta-mato, estando sujeitos a severas sanções, se acaso fôssemos surpreendidos a transitar na estrada pelos jipes que iriam andar por ali a patrulhar todo o percurso.
Mal o camião abandonou o local, fizemos soar os nossos gritos, a que corresponderam os camaradas mais próximos, alguns dos quais já se haviam reunido junto de um chafariz ali existente, a comentar, jocosamente, os momentos de terror por que passara o que fora largado naquele preciso local. É que lhe fora dito que tivesse muito cuidado com qualquer passo que pudesse dar, pois encontrava-se junto de um perigosíssimo precipício, em que poderia cair e ficar sem conserto. Para tornar o quadro ainda mais dramático e aterrorizador, foi advertido de que aquele ruído de água a cair que se ouvia em fundo era o de uma cascata que ali existia, junto ao dito precipício. É claro que o homem para ali ficou, imóvel, completamente petrificado, aos gritos, à espera que alguém o viesse ajudar a desembaraçar-se da situação. E, afinal, não passava, ironicamente, de um lugar absolutamente plano, e a cascata não era mais do que o canto monótono e solitário da bica da água do chafariz precipitando-se na respetiva pia!
..................................................................................................................................